quarta-feira, 4 de agosto de 2010

«No estado em que se encontra o país, os homens inteligentes que têm em si a consciência da revolução – não devem instruí-lo, nem doutriná-lo, nem discutir com ele – devem farpeá-lo. As Farpas são pois o trait, a pilhéria, a ironia, o epigrama, o ferro em brasa, o chicote – postos ao serviço da revolução.»

Eça de Queirós




ONTEM

Este país está «floribelado».
Reconheço que sou um insatisfeito com a vida, e não me estou a referir às situações em que ela me tem sido madrasta. No entanto, mesmo possuindo um sentir pessimista, considero que não sou um integralista descrente, vivendo em completa bruma tediosa. Por vezes não consigo acompanhar o actual ritmo da vida, mas isso não significa que esteja preso às ideias do meu passado, recorrendo à máxima de que no meu tempo é que era bom, contudo, sou obrigado a reconhecer que dou comigo, frequentemente, a sentir que não me enquadro com a «nova» mentalidade quotidiana, ora de braço e mão esticados, ora de «mãozinha» revirada para cima em gemidos desfalecidos, retorquindo asperamente o desabafo do Júlio Dantas, “isto é só para safados!” e “safadinhos”.
Abordaram-me – simpaticamente diga-se de passagem, apesar do formalismo do agendamento do «encontro» profissional –, para me tirarem algo do meu saber e contando que, em prol de não sei o quê, colaboraria com algo que não concordo. Estão, nestes últimos anos a matar um projecto de trabalho, construído e assente, não na vontade individual, mas sim numa ideia estudada, defendida e aplicada por gerações de profissionais das ciências documentais, há mais de três décadas.
Estas novas gerações de dirigentes, nados e criados nos grupos juvenis dos partidos políticos, que chegaram por estes últimos anos ao poder são, de facto, um produto das circunstâncias. Não possuem cultura geral nem cívica. Julgam que vestir um fato preto com uma gravata cinzenta, do Hugo Boss, ou conduzir um Audi, em segunda mão, lhes dá o estatuto e a experiência.
Muito recentemente um homem – que obviamente não posso identificar –, que apesar de estar na política por ambição pessoal, não esqueceu a educação e os princípios de convivência recebidos dos senhores seus pais, disse-me que havia muita falta de reflexão sobre os comportamentos, que alguns dirigentes se esqueciam da diferença entre o estar e o ser, porque, simplesmente, eram produtos da falta de cultura existente neste pequeno Portugal. E isso acontecia, porque não tinham, ainda, o tempo necessário para obter a sabedoria de vida, ou porque viviam, exclusivamente, do imediatismo encontrado no poder de ser.
A conquista do poder, por parte destas gerações, cultural e humanistamente, híbridas é feita numa base de astúcia e em abandono de qualquer seriedade. Para eles não é preciso ter ideias provenientes do estudo, da análise e da discussão, não sentem, até, a necessidade de conhecer o espaço e o homem que os rodeiam, porque o único objectivo que norteia a sua vida é manter o poder conquistado, seja pela bajulação a quem está acima seja pelo caciquismo opressivo sobre quem está por baixo.
Esta aplicação do medo e da insegurança como método de gestão, embrulhado em traiçoeiros beijos e de falsos cumprimentos, leva-nos a pensar que o mérito de subir mais alto e que a vontade de dar o nosso melhor só conduz ao sermos mais detestados e mais insultados. De um momento para o outro, através de vozes e engraxamentos subservientes, somos passados a bodes expiatórios de mesquinhas ambições e de sobrevivências realizadas a todo o preço, impondo-se o nosso afastamento, não só como potenciais inimigos concorrentes, visto sermos declarados conhecedores das fraquezas, das incongruências e das apropriadas mudanças dos tempos e das vontades.
Segundo o historiador Fernando Rosas, este nosso Portugal dos pequeninos tem uma administração e uma sociedade com uma longuíssima história de delação, correspondendo a um figurino sociopolítico das sociedades subdesenvolvidas, em que a delação é um subproduto da miséria, do atraso e da falta de atitude cívica e solidária. De facto, posso confirmar esta premissa, porque durante os meus recentes estudos, deparei-me com centenas de manuscritos, anonimamente codificados, relatando situações, propósitos, opiniões e acontecimentos, em denúncias nominais, começando, praticamente, todos eles, pela frase «consta que». Há data a que o meu estudo se reporta, estes nomes denunciados – que nada têm de anónimos –, sofreram com a humilhação da prisão, a dor física da tortura, o ostracismo do medo. Hoje, adormecidos pelo sol da democracia, acabamos por nos prendermos na dignidade do silêncio, na procura de vencer na serenidade do estar e na generosidade do esquecimento, para ultrapassar os momentos e as indignações a que somos sujeitos.


HOJE

Dia normal, sem traumas nem tramas.
Continuo magoado e desiludido com o Portugal dos pequeninos. Mais uma vez vieram ter comigo com explicações esfarrapadas e lágrimas de crocodilo. Compreende-se, não vá o diabo tecê-las…
Tenho que procurar não falar demasiado, não porque tenha receio de represálias, mas porque me dói. Sempre disse o que pensava e espero poder continuar a fazer o mesmo.
Aliás, cada vez gosto mais dos meus cães e da sua sinceridade de olhar.

domingo, 6 de junho de 2010

Actualidades - I

Comecei a reler as Farpas de Eça e Queirós e de Ramalho Ortigão.
Meu Deus! Que aflição, passaram 137 anos e tudo está na mesma.
Vejam a actualidade desta passagem escrita em Maio de 1871:

«O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras [= falências] sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel [Aluguel = Aluguer]. A agiotagem explora o juro. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. O número das escolas só por si é dramático. O professor é um empregado de eleições. A população dos campos, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de vinho, trabalhando para o imposto por meio de uma agricultura decadente, puxa uma vida miserável, sacudida pela penhora: ignorante, entorpecida, de toda a vitalidade humana conserva unicamente um egoísmo feroz e uma devoção automática. No entanto a intriga Política alastra-se. O país vive numa sonolência enfastiada. Apenas a devoção insciente perturba o silêncio da opinião com padre-nossos maquinais.
Não é uma existência, é uma expiação.
A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: o país está perdido! Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete [Voltarete = Antigo jogo de quarenta cartas jogado por três ou quatro parceiros], [enquanto] que de norte a sul, no Estado, na economia, na moral, o país está desorganizado – e pede-se conhaque! Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!»

A decadência mantém-se, independentemente dos balões de oxigénio vindos da CEE.
Depois deste momento de narcisismo puro, regresso à actualidade dos textos queirosianos, subscrevendo as palavras do escritor Miguel Real quando este nos diz que «sob a diferença da conjectura vibra hoje, estruturalmente, o mesmo Portugal que Eça conheceu nas décadas de 80 e 90 do Século XIX: Instituições bloqueadas ou ineficazes (Justiça, Educação, Saúde), uma classe política genericamente medíocre – refugo, em todos os partidos, das notáveis direcções refundadoras da democracia –, uma Assembleia da República de funcionários, em que mais sobeja o interesse do que o pensamento, um empresariado especulativo, assente no betão e no comércio de curto prazo, elites jogando com a sorte, visando a fama sem o suor do estudo e do trabalho, um povo bárbaro rastejando em Fátima ou ululando em estádios de futebol, de olhos guardados numa televisão vocacionada para mentes imbecis, frequentando os delirantemente maiores centros comerciais da Europa.» [Miguel Real. O Último Eça, 2006. p. 11]

Vivências - I

Ontem, tive um fim de tarde agradável, na Ericeira – enfim, fica salvo o passar do tempo –, encontro calma e a suavidade de um entardecer de verão, e, até, algum divertimento numa ida a uma retrosaria com balcão de madeira e armários com portas de vidro, cenário comercial do nosso «passado». Mal entramos naquela loja ficamos rodeados de rolos de tecidos, lisos e estampados, coloridos ou de uma única tonalidade, empilhados ao sentido das cores, das texturas e dos propósitos. Chitas para um lado, algodões para outro, à esquerda os linhos, à direita as sedas, em quantidades e padrões definidos pelo preço do metro e da lei da procura e da oferta. Em frente dos nossos olhos perfilam-se molhos de fechos éclairs, fitas e debruns e gavetas de linhas e botões, tudo pronto para satisfazer as necessidades e as vontades dos clientes.
Aproveito o ambiente e informo a empregada que lhe venho pedir que me faça a bainha das calças se aqueles tecidos de flores e aqueles forros brancos, medidos a metro-padrão de madeira, se sobrepuserem às minhas prioridades dependentes dos afazeres domésticos de corte e costura de casa.
Saio com a promessa de que a minha necessidade será satisfeita, após o jantar com as minhas cinco mulheres, quatro Marias e uma Ana, no «Pinta», que agora é uma pizzaria, mas que já foi cervejaria, premiada pela frescura e qualidade dos mariscos e da sua açorda.
Sinto-me um Rei. De facto, reconheço que sou um homem privilegiado – e, apesar de todo o pessimismo sentido neste Portugal -, que vive rodeado de afecto e dedicação.

Oh!... Que Portugal este!... Que Fado!

Mais um dia passado.
Acredito que tudo isto ainda possa mudar. «A renovação é uma lei da vida». E apesar dos desencantos, facadas e pontapés que temos apanhado – «temos muitas cicatrizes na alma» –, acredito que ainda se possa manter a integridade moral e a cabeça erguida, resistindo de modo a que esta comédia não se transforme em tragédia e que as situações deprimentes destes dois últimos tempos não sejam reflexos de tiques de autoritarismo, de ameaça e de subserviência.
Estou a fazer “limpezas” no portátil e não consegui apagar um “apontamento” (parte de um texto) que escrevi e publiquei na extinta revista sintrense, «Vária Escrita». A sua actualidade e o seu sentir mantêm-se presentes, pelo que, novamente, o registo:
«António Sérgio, nos seus Ensaios, questiona quais as «condições especiais» que existem no nosso país e, naturalmente, o porquê delas existirem, para ter havido um suicídio de um Antero, de um Camilo, de um Soares dos Reis, de um Costa Ferreira, de um Júlio César Machado, de um Mouzinho de Albuquerque, de um Manuel Laranjeira, de um José Fontana, entre outros.
Na sua amargurada interrogação, António Sérgio pergunta-nos, em suas palavras, “(...) porque há tanto vil, co’a breca, entre os "intelectuais" desta terra, e tanto escarninho odiador de toda reverberação do espírito; (...) porque é que tudo que vale sofre o desprezo aqui, ou o ataque, a traição, o abandono, a chufa; porque é que a sarça da retórica, tão invasora e fértil, a do psitacismo expansivo, a da estupidez invencível, sempre reconquistam todo cantinho de agro que porventura uma personagem de excepção cultiva; porque é que tudo que surge de realmente bom, de probo, de saudável, de inteligente e nobre, - se perde, definha, degenera ou morre, neste ambiente inóspito; porque é que no nosso país, mais que em qualquer outro, os "núncios de um futuro longínquo" são sempre “vitimas de um presente cruel” ?” (António Sérgio. Ensaios (Tomo I). 3ª Ed. Lisboa. Sá da Costa, 1980. pp. 92-93.).
Sem saber dar uma resposta precisa nem solúvel sobre o fenómeno plural apontado, somos de opinar e reconhecer que, ainda hoje, é legitima e cheia de actualidade a interrogação sergiana, mesmo havendo o abandono “generalizado” do sentimento suicida vivido na passagem do século XIX para o XX.
As fatalidades e as apatias, as angústias e as duvidas encontradas no passado, perseguem-nos pelo tempo, repetindo-se a gladiatura das incertezas nas crenças de ser ou não ser por um Deus qualquer, com mais ou menos fundamentalismos exacerbados, do abandono da troca de opiniões pelas manifestações cegas do individualismo totalitário, da substituição de princípios e de noções de convívio e de civilidade, pelas imposições dos sentimentos de medo que se passeiam armados de canos serrados em auto-estradas, da obscuridade das decisões impostas pela globalidade de uns poucos sobre a identidade e o querer de muitos outros, da morbidez dos desânimos causados pela falta de realização dos sonhos, ou do azedume quotidiano dos apertos e das filas indetermináveis do trânsito, pela identificação de propósitos e desejos colectivos, da transformação do suspirante abraço de solidariedade, no cinismo do desvio dos pacotes de esparguete ou de arroz agulha, saídos do armazém do “banco da fome”, do sumptuarismo do verbo possuir e do mundo colorido do engano do cartão de crédito, propagandeado no leve agora e pague depois, pela consciência do limite e da sensatez, da falsa felicidade dos momentos prometidos nos argumentos das telenovelas ou da glória de uma fama televisiva, encontrada em comentários falados, em mundos “vip’s”, entrevistas acorrentadas ou em “big brodianos” ópios que anestesiam o nosso pensar.
Em suma, os tédios e os pessimismos do nosso “fado” em nada mudaram, apenas as formas de se manifestarem e os intervenientes, porque, de facto, continuam a ser os tempos da dança dos liberalismos sem rosto ou das derrocadas dos mundos ditos socializantes, ou, simplesmente, das ditaduras subtis pela existência da falta de alternativas. Continuamos a viver na ideia oitocentista do descrédito total do papel da função e do desempenhar político, sustentado pelos permanentes desgovernos e corrupções dos aparelhos governativos e pelos viciadas e vendidas promessas sobre a “terra prometida”, gritadas tantas vezes nos cortes de estradas, fabricadas nas capas dos jornais que melhor vendem ou nas sondagens telefónicas de números mágicos. São as dúvidas e as incertezas constantes no sistema financeiro e nos resultados económicos, de uma bolsa que está sempre em perda, mas que nunca entra em falência, a par do desespero e da impotência de não sermos ninguém nas questões internacionais, de não termos submarinos, porta-aviões ou mísseis intercontinentais. São os desencantos pelo reconhecimento de que o único desenvolvimento declarado é o do obscurantismo, da ignorância e da ausência de soluções que, apenas, alteram os dados de podermos ser mais que os outros, porque se de seis estádios apenas se precisava, fizemos dez no culto do principio da vaidade e da fachada. Em suma, são os tempos em que também se vive na renúncia, com a indiferença, o cansaço e o pessimismo demolidor de quem sabe que para haver a diferença desejada, vamos ter de entrar numa outra lista de espera até “sentirmos o desejo de ser civilizados e, não apenas, contentarmo-nos só em parecê-lo” (Bernard Martocq. Manuel Laranjeira et son temps. Paris. FCG. 1985. p. 662 [Carta remetida a Miguel de Unamuno, provavelmente em Abril de 1911])».

domingo, 30 de maio de 2010

Textos antigos, mas pensamentos actuais.




Sintra, a mui prezada...
[Crisfal, século XVI]

Da recolha de textos dispersos vou experimentar uma forma «bloguiana», juntando registos passados, com data ou sem data, e momentos presentes.
Vamos a ver até onde vai a conflituosidade que o tempo impõe ao pensamento.



Vasculhando os meus baús da memória, descobri, perdidos por entre as recordações herdadas dos mais velhos e das páginas amarelecidas dos apontamentos, alguns postais ilustrados de uma outra Sintra, hoje, irremediavelmente, desaparecida.
Com estas imagens de um oitocentismo final, em passagem de século, ficamos a conhecer a verdadeira harmonia urbana de um espaço pequeno – que sempre foi e que continuará a ser sempre pequeno –, talhado na encosta da serra, por entre penedos e minúsculas “varandas socalcadas” de casas construídas e reconstruídas ao sabor da vontade e da sensibilidade do homem e da necessidade de repor o conforto e a modernidade de um novo tempo.
Do socalco maior que em passado já esquecido se terá chamado Chão de Oliva, por real e dogmático querer se viu crescendo, pedra a pedra, a marca de cada um dos tempos e de cada um dos saberes presentes, surgindo, enfim, um «(...) maciço e silencioso palácio, sem florões e sem torres, patriarcalmente assentado entre o casario da vila, com as suas belas janelas manuelinas que lhe fazem um nobre semblante real, o vale aos pés, frondoso e fresco, e no alto as duas chaminés colossais, disformes, resumindo tudo, como se essa residência fosse toda ela uma cozinha talhada às proporções de uma gula de rei que cada dia come todo um reino...»(Eça de Queirós. Os Maias).
Reconheço que sinto uma curiosidade enorme em conhecer os relatos, as opiniões, os impropérios e as defesas pessoais e públicas, causadas pela surpresa do ineditismo daquilo que surgia ou desaparecia por entre recantos, becos e ruelas ou, até, praças de nome forçado, onde, apenas, ali, convergiam e se cruzavam as ruas principais deste “mundo lilliputiano”, por onde garotavam queirosianas crianças, enxovalhadas e em farrapos e os cães vadios dormiam ao sol. Como teriam sido as oportunas aclamações de aplauso ou as inconvenientes e incalculadas mazelas verbais de quem não se precaveu de um discurso convincente de tradicionalismo ou, invés de modernismo para admirar e defender tão maravilhoso espectáculo que se edificava perante os olhares do quotidiano?
Sintra, a mui prezada, cândida de pintores e poetas, também, tem sido, ao longo dos tempos, objecto de desapego gratuito da sua memória histórica e do registo criativo das suas gentes. No passado e no presente a incúria, a ignorância, a insensibilidade estética e a irracionalidade das ortodoxias fundamentalistas – quais pragas que o saber e a inteligência humana não conseguiram apagar do comportamento dos homens –, continuam a prevalecer e a deixar a sua marca cicatrizante de uma falta genética de Cultura, Compreensão, Comunicação e Civismo.
Num artigo muito recente, Guilherme d’ Oliveira Martins, escrevia que, ao mesmo tempo que «devemos garantir e assegurar que os monumentos, os lugares, os bens patrimoniais, os vestígios humanos» e, até, as próprias pessoas, as suas comunidades e os seus espaços, sejam, todos eles, «elementos activos de conhecimento mútuo e de compreensão», temos de «recusar as identidades fechadas» que negam a abertura e a disponibilidade que asseguram «um permanente diálogo entre a tradição e a modernidade».
Sintra a mui prezada, encastrada entre os penedos da serra e o planalto natural do chão de oliva, tem sofrido, no correr dos tempos, alterações mais ou menos significativas, umas em resultado da vontade natura, outras em consequência da permanência do homem e da sua onírica ocupação territorial. Em tempos longínquos, de lugar sagrado e enigmático de criação e pertença divina transformou-se em propriedade humana chancelada em direitos e posses de régios e senhoriais poderes; Em passados centenários, de espaço de quintas e terras de caça e cultivo consolidou-se em lugarejo provinciano; Em contemporaneidades mais recentes, de vila áulica e de pequena urbanidade converteu-se em “Vila Velha” turística e desertificada de calores e vidas humanas.
Três tempos e três passados que são exemplos do confronto entre a dádiva da última tradição e da última «herança recebida» e a “emancipação” da vontade opinativa, imposta como linha de força determinante do pensamento ocasional do “tempo” e do sentimento da “modernidade” presente. Sintra, de Eden poetizado tem sido na nossa contemporaneidade ostracizada na sua salvaguarda de “tradição” em prole de tomadas inconsequentes e desvirtuantes nas decisões de alterar a memória patrimonial existente.
Veja-se o exemplo de mudanças radicais e abrutas resultantes das “intervenções” de 1911 sobre o Palácio Nacional da Vila. As imagens, anteriores a essa data, mostram-nos um Palácio rodeado por um casario que, sem lhe tirar a majestosidade do seu complexo edificante, lhe davam uma intransponência misteriosa e resguardada. A Porta de Armas, ladeada de guaritas, de plátanos e palmeiras anilhadas com bancos de alvenaria e azulejo, em companhia do esguicho manuelino, transformavam, de facto, a confluência de três ruas em praça, dando-lhe uma verdadeira e proporcionada escala. Hoje, tudo isso se perdeu e ficou, apenas, um “falso adro”, sem graça, descontextualizado em relação ao resto do edifício, com um único fim, encher; Primeiro, de autocarros que traziam as pessoas, agora, de pessoas, mas sem autocarros. Ao olharmos para aquele espaço perdido, despido e adulterado, parece que estamos perante um largo fronteiro de um santuário, feito propositadamente para receber comerciais peregrinações incalculáveis. E, ali ao lado, vemos e questionamos, mais em jeito de incompreensão do que de saudade, onde está o queirosiano “Nunes”, a uns passos adiante, a “Alpendrada do Mercado”, para o outro lado, a Igreja da Misericórdia, a Albegoaria, o original Palácio Valenças, a “Volta do Duche”, mais além, a capela de São Sebastião ou a “Cabeça do Lagarto”, à saída do Cemitério de São Marçal, junto à estrada que vai para o Lourel. Enfim, onde estão todos essas memórias e essas identidades de um outro tempo que transformaram este “espaço” privilegiado da cultura Romântica oitocentista? Que compreensão podemos nós tentar fazer dessa Sintra lugareja que a Modernidade desenvolveu em redor de duas bases edificantes, o Palácio Real e a Estação do Caminho-de-Ferro, De facto não podemos negar, aceitar ou, até, justificar o que desapareceu à luz do nosso actual pensamento, no entanto, se queremos sentar na barra do tribunal da história e ser juizes, então só podemos procurar a sensatez e a sabedoria de reconhecer (e citando de novo Guilherme d’ Oliveira Martins), que «o pluralismo, a liberdade, a abertura, a compreensão do outro e do diferente são peças fundamentais numa “sociedade de cultura”».
Por tudo isto e porque considerarmos que qualquer criação humana pode ser reconhecida como referência histórica e cultural, já que constitui o resultado do momento e da memória, ou seja, representa o elemento essencial para ser referência humana, somos de aceitar que a presente intenção de “reconstruir” o “edifício das padarias” e a “Pensão Bristol” são, em si, os elementos necessários e imprescindíveis para, em nome do «respeito e da preservação do espírito dos lugares» procurar uma cultura de paz, aberta e cosmopolita».
Ora, aparentemente, pelo que tenho lido, falado e acompanhado só me resta chegar a uma conclusão, não houve profilaxia, ensinamento nem segura tomada de consciência dos intervenientes do processo. Os cidadãos detentores da propriedade defenderam a sua ideia numa base única de realização, as organizações de salvaguarda responderam com o propósito da sociedade e com o reconhecimento do valor universal da defesa do Património Cultural; As instituições de decisão impuseram a sua definição sem a clarividência e a sensatez de dizer “não” acompanhado de “solução”. Enfim, mais uma vez, funcionou a falta de coesão cultural, a Compreensão, a Comunicação e o Civismo exigível ao reconhecimento das acções de salvaguarda do património cultural como «um valor e um recurso ao serviço de um desenvolvimento humano sustentável, gerador de direitos e deveres».
Por considerarmos que o património cultural materializa e solidifica os laços que unem histórica e geograficamente um povo, torna-se clarividente que o papel a desempenhar, por este mesmo Património Cultural, consubstancia-se como senso comum em instrumento de cidadania e inclusão social, com rebatimentos óbvios de auto-estima comunitária, gerando sentimentos nobres de solidariedade, compromisso e sentido pessoal de "pertença" sob o seu espaço, o seu tempo e as suas dádivas culturais.
Para Frederico Mayor Saragoza (Director Geral da UNESCO), o Património poderá ser uma forma, um meio de caminhar para a paz entre os homens deste mundo. Quanto a nós, e a ideia aplica-se necessariamente a este canto à beira mar plantado, a salvaguarda do Património e da Cultura depende, exclusivamente, da nossa vontade, do nosso saber e do nosso desejo de perpetuar a memória e, consequentemente, promover, o espirito de solidariedade, a compreensão mútua e o respeito mais profundo pela consciência colectiva e individual existente perante as tradições, os costumes, os conhecimentos, as atitudes, as ideias e os sentimentos que foram sendo construídos ao longo do tempo passado e do tempo presente.

Em modo de apresentação

Adormecidos pelo sol, substituímos a crítica pela pilhéria, a dignidade pelo petisco (de mesa, de cama, de compadrio, de negócio), substituíamos, cantando e rindo, a liberdade pela imaginação dela.

Fernando Dacosta

Eu gostaria que aqueles que quisessem fazer-me objecções não se apressem, e que tratem de entender tudo o que escrevi, antes de julgarem por uma só parte, porque tudo se relaciona e o fim serve para provar o começo.

Descartes. Lettre à Meisenne

Sobreviver ao corte do cordão umbilical. E, após o primeiro grito, veio o crescer, o sentir, o conhecer... Depois, vieram os tempos de conquistar o real brincando, em reinos do faz-de-conta. Entretanto, os anos somavam-se nas velas dos bolos de aniversário e, com eles, veio a escola, a puberdade, a descoberta dos sentidos, o beijar em carícias desconhecidas raparigas fugidias, o fumar os primeiros cigarros, o beber em bebedeiras infantis o primeiro vinho... Mais tarde, o tempo da revolta e das vontades de querer ser dono e senhor de um mundo muito seu, revolucionar-se pela justiça de ter e ser ideia... A meio caminho, ultrapassar uma morte que o tempo moldou como sendo, também a sua, no descobrir que, afinal, à chamada da lembrança, responde a dor da saudade. Por esse tempo, foi o descobrir do trabalho em função da necessidade, sentido em romantismo de ideologia de vida no ser e querer ser operário e estudante; E, ainda, no assinar em papel solene um sim vestido de ilusão eterna, terminar os estudos em corridas leituras nocturnas, iludir o tédio e a monotonia de uma relação sem conquista, tentar saber ser pai sendo órfão em vida, analisar os sentimentos, gritar em revolta as desilusões do amor; Agora, depois de amargas decisões, em outro tempo, tentar encontrar a identidade com algo perdido, procurar saber a razão de sobreviver sem ter que estar, constantemente, a pensar no passado, procurando aquela condição necessária que tudo condiciona sem ter que estar, permanentemente, a procurar qual a razão de um homem ter de ficar, no eterno, condenado a sofrer por não ter sabido vencer.
Todavia, havia outra coisa que não pertencia somente ao sentimento. Era algo que não sei definir, mas que estava perceptível. Era qualquer coisa que, apenas, reconheço como comum às personagens, aos lugares, as datas, aos acontecimentos, às sensações; ou melhor, era qualquer coisa que não tem definição própria, mas que pertence – porque transparece – ao mundo das palavras escritas nos textos, apesar de existir no campo do abstracto e não do concreto.
Esta "coisa qualquer" está ligada à nossa atitude perante o que estamos a viver. Neste caso, não seria correcto que a minha apreciação incidisse somente sobre um Eu – que obviamente existe – limitando a imagem do autor dos escritos. Por isso, parti de um princípio de que todos nós, que, em dada altura, também estamos do outro lado, não nos custa aceitar a hipótese de assumir uma ideia proposta. Então, porque não participármos todos na ilusão de que poderá ser o nosso Eu o interlocutor preferencial de tudo aquilo que se pode escrever?
Acho que é um desafio possível de se fazer, sabendo, no entanto, qual poderá ser a nossa resposta. Vamos sempre dizer que, para o nosso caso, se algo aqui dito tem semelhança com a nossa realidade, é pura coincidência.
Que seja.
Talvez, assim, se compreenda que o Eu que se conhece em algumas histórias dispersas é um sobreviver abstracto, resultante da imaginação. E um Eu que brinca com a vida, mas nunca com o outro lado da vida; que não brinca com o que sente para além dele próprio.
Tudo pode ser ilusão. Tudo pode ser realidade. A observação apenas depende de se aceitar ou não o caminho proposto.
Como possuidor de um Eu, escolhi um caminho. Aceitei-o quando conheci um velho ditado polaco, que diz: «jamais persigas o vento na planície, pois é inútil tentar encontrar o que desapareceu».
Todos os homens, todas as mulheres procuram o mesmo caminho. Procuram o que está na origem e que constitui o alimento de toda a actividade, seja física, seja intelectual: o conhecimento.
Só que, por vezes, o que encontram está acompanhado de um não. Eu tenho encontrado, demasiadas vezes, o meu não, por isso, algumas vezes, deixei o meu lugar vazio.