domingo, 6 de junho de 2010

Actualidades - I

Comecei a reler as Farpas de Eça e Queirós e de Ramalho Ortigão.
Meu Deus! Que aflição, passaram 137 anos e tudo está na mesma.
Vejam a actualidade desta passagem escrita em Maio de 1871:

«O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras [= falências] sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel [Aluguel = Aluguer]. A agiotagem explora o juro. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. O número das escolas só por si é dramático. O professor é um empregado de eleições. A população dos campos, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de vinho, trabalhando para o imposto por meio de uma agricultura decadente, puxa uma vida miserável, sacudida pela penhora: ignorante, entorpecida, de toda a vitalidade humana conserva unicamente um egoísmo feroz e uma devoção automática. No entanto a intriga Política alastra-se. O país vive numa sonolência enfastiada. Apenas a devoção insciente perturba o silêncio da opinião com padre-nossos maquinais.
Não é uma existência, é uma expiação.
A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: o país está perdido! Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete [Voltarete = Antigo jogo de quarenta cartas jogado por três ou quatro parceiros], [enquanto] que de norte a sul, no Estado, na economia, na moral, o país está desorganizado – e pede-se conhaque! Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!»

A decadência mantém-se, independentemente dos balões de oxigénio vindos da CEE.
Depois deste momento de narcisismo puro, regresso à actualidade dos textos queirosianos, subscrevendo as palavras do escritor Miguel Real quando este nos diz que «sob a diferença da conjectura vibra hoje, estruturalmente, o mesmo Portugal que Eça conheceu nas décadas de 80 e 90 do Século XIX: Instituições bloqueadas ou ineficazes (Justiça, Educação, Saúde), uma classe política genericamente medíocre – refugo, em todos os partidos, das notáveis direcções refundadoras da democracia –, uma Assembleia da República de funcionários, em que mais sobeja o interesse do que o pensamento, um empresariado especulativo, assente no betão e no comércio de curto prazo, elites jogando com a sorte, visando a fama sem o suor do estudo e do trabalho, um povo bárbaro rastejando em Fátima ou ululando em estádios de futebol, de olhos guardados numa televisão vocacionada para mentes imbecis, frequentando os delirantemente maiores centros comerciais da Europa.» [Miguel Real. O Último Eça, 2006. p. 11]

Vivências - I

Ontem, tive um fim de tarde agradável, na Ericeira – enfim, fica salvo o passar do tempo –, encontro calma e a suavidade de um entardecer de verão, e, até, algum divertimento numa ida a uma retrosaria com balcão de madeira e armários com portas de vidro, cenário comercial do nosso «passado». Mal entramos naquela loja ficamos rodeados de rolos de tecidos, lisos e estampados, coloridos ou de uma única tonalidade, empilhados ao sentido das cores, das texturas e dos propósitos. Chitas para um lado, algodões para outro, à esquerda os linhos, à direita as sedas, em quantidades e padrões definidos pelo preço do metro e da lei da procura e da oferta. Em frente dos nossos olhos perfilam-se molhos de fechos éclairs, fitas e debruns e gavetas de linhas e botões, tudo pronto para satisfazer as necessidades e as vontades dos clientes.
Aproveito o ambiente e informo a empregada que lhe venho pedir que me faça a bainha das calças se aqueles tecidos de flores e aqueles forros brancos, medidos a metro-padrão de madeira, se sobrepuserem às minhas prioridades dependentes dos afazeres domésticos de corte e costura de casa.
Saio com a promessa de que a minha necessidade será satisfeita, após o jantar com as minhas cinco mulheres, quatro Marias e uma Ana, no «Pinta», que agora é uma pizzaria, mas que já foi cervejaria, premiada pela frescura e qualidade dos mariscos e da sua açorda.
Sinto-me um Rei. De facto, reconheço que sou um homem privilegiado – e, apesar de todo o pessimismo sentido neste Portugal -, que vive rodeado de afecto e dedicação.

Oh!... Que Portugal este!... Que Fado!

Mais um dia passado.
Acredito que tudo isto ainda possa mudar. «A renovação é uma lei da vida». E apesar dos desencantos, facadas e pontapés que temos apanhado – «temos muitas cicatrizes na alma» –, acredito que ainda se possa manter a integridade moral e a cabeça erguida, resistindo de modo a que esta comédia não se transforme em tragédia e que as situações deprimentes destes dois últimos tempos não sejam reflexos de tiques de autoritarismo, de ameaça e de subserviência.
Estou a fazer “limpezas” no portátil e não consegui apagar um “apontamento” (parte de um texto) que escrevi e publiquei na extinta revista sintrense, «Vária Escrita». A sua actualidade e o seu sentir mantêm-se presentes, pelo que, novamente, o registo:
«António Sérgio, nos seus Ensaios, questiona quais as «condições especiais» que existem no nosso país e, naturalmente, o porquê delas existirem, para ter havido um suicídio de um Antero, de um Camilo, de um Soares dos Reis, de um Costa Ferreira, de um Júlio César Machado, de um Mouzinho de Albuquerque, de um Manuel Laranjeira, de um José Fontana, entre outros.
Na sua amargurada interrogação, António Sérgio pergunta-nos, em suas palavras, “(...) porque há tanto vil, co’a breca, entre os "intelectuais" desta terra, e tanto escarninho odiador de toda reverberação do espírito; (...) porque é que tudo que vale sofre o desprezo aqui, ou o ataque, a traição, o abandono, a chufa; porque é que a sarça da retórica, tão invasora e fértil, a do psitacismo expansivo, a da estupidez invencível, sempre reconquistam todo cantinho de agro que porventura uma personagem de excepção cultiva; porque é que tudo que surge de realmente bom, de probo, de saudável, de inteligente e nobre, - se perde, definha, degenera ou morre, neste ambiente inóspito; porque é que no nosso país, mais que em qualquer outro, os "núncios de um futuro longínquo" são sempre “vitimas de um presente cruel” ?” (António Sérgio. Ensaios (Tomo I). 3ª Ed. Lisboa. Sá da Costa, 1980. pp. 92-93.).
Sem saber dar uma resposta precisa nem solúvel sobre o fenómeno plural apontado, somos de opinar e reconhecer que, ainda hoje, é legitima e cheia de actualidade a interrogação sergiana, mesmo havendo o abandono “generalizado” do sentimento suicida vivido na passagem do século XIX para o XX.
As fatalidades e as apatias, as angústias e as duvidas encontradas no passado, perseguem-nos pelo tempo, repetindo-se a gladiatura das incertezas nas crenças de ser ou não ser por um Deus qualquer, com mais ou menos fundamentalismos exacerbados, do abandono da troca de opiniões pelas manifestações cegas do individualismo totalitário, da substituição de princípios e de noções de convívio e de civilidade, pelas imposições dos sentimentos de medo que se passeiam armados de canos serrados em auto-estradas, da obscuridade das decisões impostas pela globalidade de uns poucos sobre a identidade e o querer de muitos outros, da morbidez dos desânimos causados pela falta de realização dos sonhos, ou do azedume quotidiano dos apertos e das filas indetermináveis do trânsito, pela identificação de propósitos e desejos colectivos, da transformação do suspirante abraço de solidariedade, no cinismo do desvio dos pacotes de esparguete ou de arroz agulha, saídos do armazém do “banco da fome”, do sumptuarismo do verbo possuir e do mundo colorido do engano do cartão de crédito, propagandeado no leve agora e pague depois, pela consciência do limite e da sensatez, da falsa felicidade dos momentos prometidos nos argumentos das telenovelas ou da glória de uma fama televisiva, encontrada em comentários falados, em mundos “vip’s”, entrevistas acorrentadas ou em “big brodianos” ópios que anestesiam o nosso pensar.
Em suma, os tédios e os pessimismos do nosso “fado” em nada mudaram, apenas as formas de se manifestarem e os intervenientes, porque, de facto, continuam a ser os tempos da dança dos liberalismos sem rosto ou das derrocadas dos mundos ditos socializantes, ou, simplesmente, das ditaduras subtis pela existência da falta de alternativas. Continuamos a viver na ideia oitocentista do descrédito total do papel da função e do desempenhar político, sustentado pelos permanentes desgovernos e corrupções dos aparelhos governativos e pelos viciadas e vendidas promessas sobre a “terra prometida”, gritadas tantas vezes nos cortes de estradas, fabricadas nas capas dos jornais que melhor vendem ou nas sondagens telefónicas de números mágicos. São as dúvidas e as incertezas constantes no sistema financeiro e nos resultados económicos, de uma bolsa que está sempre em perda, mas que nunca entra em falência, a par do desespero e da impotência de não sermos ninguém nas questões internacionais, de não termos submarinos, porta-aviões ou mísseis intercontinentais. São os desencantos pelo reconhecimento de que o único desenvolvimento declarado é o do obscurantismo, da ignorância e da ausência de soluções que, apenas, alteram os dados de podermos ser mais que os outros, porque se de seis estádios apenas se precisava, fizemos dez no culto do principio da vaidade e da fachada. Em suma, são os tempos em que também se vive na renúncia, com a indiferença, o cansaço e o pessimismo demolidor de quem sabe que para haver a diferença desejada, vamos ter de entrar numa outra lista de espera até “sentirmos o desejo de ser civilizados e, não apenas, contentarmo-nos só em parecê-lo” (Bernard Martocq. Manuel Laranjeira et son temps. Paris. FCG. 1985. p. 662 [Carta remetida a Miguel de Unamuno, provavelmente em Abril de 1911])».