quinta-feira, 8 de novembro de 2012

REPETIÇÕES DA HISTÓRIA II

«A actual classe dominante nunca será capaz de resolver a crise, porque ela é a crise! E não falo apenas da classe política, mas da educacional, da que controla os média, da financeira, etc… Não vão resolver a crise porque a sua mentalidade é extremamente limitada e controlada por uma única coisa: os seus interesses.»
Rob Riemen
 
 
Sou um leigo ou em forma menos simpática, um analfabeto, quanto ao empirismo teórico da ciência económica e financeira e os seus ditames funcionais, pelo que o texto que se segue é, acima de tudo, resultado do conhecimento adquirido na leitura do superficial e da experiência sentida no quotidiano, e a sua publicação tem mais a ver com uma intenção de partilha de questões e emoções profundas do que expressar opinião e determinar conceito sobre o deve e haver cientifico que, em aplicação concreta, resolva o entulhamento em que estamos todos metidos.
Esta manifestação escrita, também, pode ser vista como um exorcismo aos demónios que me atormentam a alma e que querem apoderar-se do meu tempo, retirando-me a capacidade e a consciência de ser senhor do dia e da hora presente e, no usufruto dessa condição, poderem transformar incessantemente os meus desejos e os meus sonhos em realidades perdidas.
Por estes dias escrevi que me sentia realizado e, por isso feliz, mas, ao mesmo tempo, dominava-me um sentimento de preocupação e tristeza. Como explicação desta aparente incongruência, acrescentava que os dois primeiros sentimentos deviam-se ao facto da minha filha Maria, aos vinte anos, ter concluído a licenciatura em Arte e Multimédia-variante fotografia, pela Faculdade de Belas Artes, salvaguardando com a conveniente e necessária declaração de que a sua graduação académica tinha sido obtida com frequência completa e dedicada de 3 anos, sem equivalências nem reconhecimento de créditos curriculares ‘relvalianos’; E, rematava o meu desabafo, dizendo que os dois estados de espirito subsequentes explicavam-se porque prevejo a incerteza pessimista do seu futuro, neste promontório agreste que deixou de ser as “madrugadas que se esperavam", "inteiras e limpas" para em "Liberdade habitarmos as substâncias do tempo" e se transformaram numa nova "noite" e num outro "silêncio", corrompido no sonho e no desejo de não haver, apenas, como alternativa consequente, uma diáspora forçada para outros lugares.
É com este estar de dor permanente e crescente angustia que vivo os momentos do meu tempo, mesmo aqueles que se identificam com as alegrias da vida.
Entre o muito que aprendi com os meus mestres da Faculdade de Letras, de Lisboa, foi de que as experiências passadas e os seus consequentes estudos dizem-nos, por si, muito do que devemos fazer para resolver os dilemas actuais. Ora, a constatação que faço sobre a nossa realidade de momento é que, infelizmente, pouco ou nada serve o conhecimento adquirido e o registo da história, porque as gerações que hoje detêm o poder – umas, reconhecidamente entrelaçadas numa rede promíscua de famílias político-financeiras de interesses globalizados, outras, educadas e estruturadas nas máquinas juvenis dos aparelhos das organizações políticas –, pouco, ou absolutamente nada, estão interessados em afastar a humanidade dos ditames do caminho imposto, mesmo que isso represente sofrimento, miséria, medo ou ódio decorrente. Há 70 anos atrás, o mundo de então, abriu a caixa de pandora soltando a ferocidade das balas e dos ódios ideológicos, em nome do espaço vital e de mundos ideológicos antagónicos; Hoje, o domínio do tempo e do espaço de todos nós não anda de suástica na manga da camisa nem faz desfiles nocturnos iluminados com archotes e fogueiras de livros excomungados; Hoje, nas chancelarias do poder político e nos escritórios envidraçados das companhias transnacionais, lá bem nos cocurutos do céu, o bater de tacões e o levantar dos braços para a frente recto, com a palma da mão para baixo tem outros sinais e outros comportamentos, mas a linha de pensamento é a mesma; Hoje, as armas usadas são as sociedades económicas em que vivemos e as suas justificações nas dependências dos movimentos dos mercados, enquanto que as munições disparadas são as intencionadas incapacidades de proporcionar a oportunidade, numa perspectiva arbitrária e desigual de distribuição da segurança, da riqueza e dos rendimentos, a par da ideia de que é a escassez de trabalho que determina a necessidade de impor a resignação servil do antes pouco do que nada.
Nesta linha de pensamento[i], sobre o actual momento de crise económica e financeira que assiste o mundo ocidental, em geral, e o nosso país em particular, perspectivamos o problema da seguinte forma esquemática: Estamos em guerra! Permanente e vertiginosa, extremada na essência da Luta de Classes.
Somos todos novos ‘servos da gleba’, vivendo em tempos de realidades cruéis, em que podemos constatar que o apregoado “Estado de Direito” encontra-se em tal crise de legitimidade e representatividade que nos leva a construir a ideia de que a democracia, a liberdade, a igualdade, a justiça e os direitos humanos são, apenas, fracassos da nossa democracia moderna e que, afinal, se confundem com um estado totalitário, permanentemente, reaccionário.
Academicamente, aceitamos que o fascismo é uma doutrina totalitária e que em passado recente se manifestou como corrente prática de uma política de acção que se opunha, violentamente, a qualquer orientação liberal, socializante ou democrática. O fascismo de hoje, em ascensão na política internacional, adoptou-se ao sistema e equilibrou as suas manifestações de poder, enquadrando as suas posturas de arregimentação ideológica com uma nova severidade económica, social e cultural, encontrada na abstracção das realidades e na apatia e na indiferença para com todos aqueles que estão fora da elite social privilegiada. Hoje a xenofobia fascista não é, apenas, para com os emigrantes ou estrangeiros, para com os comunistas, negros, judeus ou homossexuais, hoje os próprios cidadãos, indiscriminados e fora de qualquer rotulagem sociológica, sofrem as represálias deste neofascismo, disfarçado de híper liberalismo fundamentalista.
Perante esta análise e a frieza da realidade que vivemos, neste começo da segunda década do século XXI, atrevo-me, em consonância com a leitura da concepção de Carl Schmitt, de que o “soberano é aquele que decide sobre a excepção”, a afirmar que os actuais governantes portugueses estão a implantar, sorrateiramente, um Estado autoritário, de negação e anulação de direitos, dentro da ordem democrática; E, como todo e qualquer estado de excepção, via de regra, segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, tem a possibilidade da norma jurídica aplicada exceder-se a si mesma, Portugal vive, neste preciso momento, sem chamamento às teorias da conspiração e num limite da lei constitucional, um estado de excepção, como forma de regra no paradigma político dos estados contemporâneos.
Com a supressão de direitos e regalias, adquiridos pelo mundo do trabalho ao longo das últimas quatro décadas, numa temporalidade a perder de vista (por muito que aparente ser algo de cariz temporário e restrito a situações limites), o actual governo pretende transformar a excepção da medida, como justificação da imperiosa necessidade de corrigir uma situação momentânea de deficit e de cumprimento de compromissos assumidos, numa eterna e permanente normalidade. Ora, o que a História nos tem demonstrado é que as pretendidas regras de austeridade se transformam em pobreza, em exclusão social e em violência; E, seguindo as leituras dos exemplos dos estados de excepção aplicados em prolongamentos de tempo, torna-se fácil prever que a actuação governamental culminará não no exercício de uma política com intuito de restabelecer os parâmetros anteriormente existentes, mas numa combinação de gestão de austeridade com coerção renovada. Ou seja, o objectivo do governo é recriar uma figura de cidadão sem qualquer direito, ou seja, o novo servo da gleba e, consequentemente, propiciando a instalação de um espaço de poder, de mandos e desmandos de um novo ‘soberano’: o ‘mercado’.
Podemos consolidar esta nossa observação relembrando a dualidade existente no Estado de Excepção. A primeira, identificada como principal característica, através dos processos de criação das condições para que haja vazios legais, permitindo, dessa forma, obter-se o pretexto para legitimar as suas decisões, num procedimento de constante ignorância grosseira da constitucionalidade das acções a aplicar e da incompatibilidade criada com as leis em vigor: E, em segundo lugar, o seu habitual modo de proceder nubloso e de aproveitamento das zonas cinzentas que medeiam as normas e a sua violação.
Desta forma, o Estado de Excepção não precisa ser constitucionalmente decretado, há uma coexistência com o Estado Democrático de Direito, com certo ar de normalidade jurídica, mas o que se revela é a absoluta falta de códigos, regras e leis quando o assunto é o estrangulamento violento, por parte do governo hiperliberal, da população trabalhadora, em absoluta violação da vida humana. As precárias condições que a maioria da população portuguesa já enfrenta (e perspectiva-se que venha a continuar a enfrentar), estão muito aquém de qualquer direito humano e civilizacional vivido nos países europeus ricos e germanistas dominantes. A nossa vida está, neste momento, muito mais próxima da miséria do terceiro-mundismo do que da riqueza ocidental; Este governo está, de todo, mais interessado em nos transformar em servos da gleba, construindo um novo modelo de produção ‘neofeudal’, em que no topo da pirâmide estarão os senhores detentores do poder económico, independentemente de serem portugueses, alemães, americanos, sauditas ou chineses, no meio, eles próprios, como bons colaboracionistas, capatazes ou testas-de-ferro, em lugares ministeriais ou de conselhos de administração e, na base, numa total e completa subjuntividade, a maioria da população.
Num paralelismo de pensamento com o filósofo italiano Giorgio Agamben, podemos, também, desmontar o conceito de Estado de Excepção para definir o regime político português contemporâneo, envolvendo a actual vida política lusa numa situação de enfeudamento ao neoliberalismo europeu, de influência germanófila, quanto aos valores e métodos de aplicação dos modelos económico-financeiros, estabelecendo que a coexistência entre o Estado democrático de direito e o Estado do direito produz um espaço político paradoxal de indeterminação, onde funciona a violência e a arrogância das decisões em detrimento dos direitos e interesses dos comuns cidadãos.
Um estadista português, desaparecido em Dezembro de 1980, em entrevista ao Jornal «A Capital», publicada em 21 de Janeiro de 1975, terá reconhecido que «Quem tenha o mínimo de conhecimento da história da humanidade ou esteja atento ao panorama social em que vive, não pode evidentemente ignorar a luta de classes. É inegável que a divergência de interesses entre os vários grupos sociais tem conduzido uns à conquista do poder em detrimento de outros, tem conduzido à existência de exploradores e explorados e à contradição ainda hoje dominante na nossa sociedade: enquanto alguns portugueses detêm os meios de produção, a esmagadora maioria não tem, para sobreviver, senão a força do seu trabalho».
No século passado, António Sérgio interrogou-se, sobre as elites literárias portuguesas, porque é que havia tanta vilania entre os «"intelectuais" desta terra, e tanto escarninho odiador de toda reverberação do espírito». Fê-lo, apenas, sobre este mundo intelectual porque não chegou a conhecer o Portugal do século XXI. Porque se assim fosse, decerto, que me autorizaria citá-lo, abrindo o seu dizer, a todos os interlocutores da contemporaneidade política nacional, questionando-os porque é que o seu povo sofre o desprezo e o abandono, enquanto a sarça da retórica’, o faz perder, definhar ou morrer no que ele tinha de bom, de probo, de saudável, de inteligente e de nobre.
Independentemente do tempo e do propósito, contínua pertinente, legítima e actual a interrogação sergiana, porque as fatalidades e as apatias, as angústias e as dúvidas encontradas no presente são as mesmas que os nossos pais e os nossos avós conheceram no passado salazarento. Hoje, perseguem-nos no tempo, as gladiaturas das incertezas do futuro, manifestadas em modelos cegos e totalitários que, na substituição de princípios e de noções de equidade social e de respeito pela vida e pela civilidade, impõem medidas de querer.
Enfim! As realidades do nosso “fado” em nada mudaram, apenas as formas de se manifestarem e os seus intervenientes, porque, de facto, continuam a ser tempos de dança política sem rosto ou, simplesmente, das ditaduras subtis pela existência da falta de alternativas. Continuamos a viver no descrédito total do papel da função e do desempenhar político, sustentado pelos continuados desgovernos e corrupções dos aparelhos governativos e pelas viciadas e vendidas promessas sobre a “terra prometida”, gritadas tantas vezes nas bancadas da Assembleia da República, agora, decretada vazia do seu conteúdo republicano, enquanto esquecida na comemoração do seu dia e invertidamente hasteada na oficialidade dos mastros públicos.
Portugal, vive há quarenta anos num incumprimento de alteração das suas profundas desigualdades. Os projectos de transformação da Sociedade, defendidos pelas vozes dos políticos e partidarizadas nos programas eleitorais, assentam, sucessivamente, na necessidade em reformas e nos seus propósitos de alterar profunda e irreversivelmente as estruturas políticas, económicas, sociais e culturais do País. Todos estes intervenientes ajeitam a sua sapiência partindo da análise da realidade portuguesa e dos paralelismos internacionais, enaltecendo as grandiosidades estrangeiras mas registando a pretensão de não copiar modelos. Todos estes intervenientes têm como meta a conquista da igualdade e a eliminação progressiva das contradições e desigualdades económicas, sociais e culturais. Todos eles pugnam pela liberdade e reconhecem as incongruências responsáveis pela luta de classes.
Mas, todos eles, continuam a contribuir com os seus desmandos para que haja cortes de estradas e capas de jornais. Resumidamente, como escrevi há dez anos atrás, «São os desencantos pelo reconhecimento de que o único desenvolvimento declarado é o do obscurantismo, da ignorância e da ausência de soluções que, apenas, alteram os dados de podermos ser mais que os outros, porque se de seis estádios apenas se precisava, fizemos dez no culto do princípio da vaidade e da fachada. Em suma, são os tempos em que também se vive na renúncia, com a indiferença, o cansaço e o pessimismo demolidor de quem sabe que para haver a diferença desejada, vamos ter de entrar numa outra lista de espera até “sentirmos o desejo de ser civilizados e, não apenas, contentarmo-nos só em parecê-lo”.
***
A propósito, esqueci-me de observar que o estadista português desaparecido em Dezembro de 1980, mais precisamente no dia 4, se chama Sá Carneiro. Estou, hoje, com a sensação que, lá para os lados da rua São Caetano, à Lapa, a fotografia deste político deve estar arraiada da parede, porque o seu pensamento, de certeza absoluta, já não faz parte daqueles que se intitulam seus herdeiros.


[1] Aliás, é nesta linha de pensamento que o economista norte-americano Paul Robin Krugman, prémio Nobel da Economia em 2008 e actual professor na Universidade de Princeton, nos apresenta a sua tese sobre o actual momento de crise económica e financeira que assiste o mundo ocidental (“Acabem com esta crise. Já!”, Lisboa, Presença, 2012). Paul Krugman é um crítico dos movimentos teóricos da “Nova Economia”, resultantes do progresso tecnológico e da globalização económica, do final da década de 1990. Krugman é, habitualmente, considerado um seguidor da escola keynesiana, foi um acérrimo crítico da administração Bush e da sua política interna e externa - críticas apresentadas na sua coluna do The New York Times –, tendo escrito mais de duas centenas de artigos e vinte livros sobre economia e finanças. A 27 de Fevereiro de 2012 recebeu o grau de Doutor Honoris Causa da Universidade de Lisboa, Universidade Técnica de Lisboa e da Universidade Nova de Lisboa.