quarta-feira, 4 de agosto de 2010

«No estado em que se encontra o país, os homens inteligentes que têm em si a consciência da revolução – não devem instruí-lo, nem doutriná-lo, nem discutir com ele – devem farpeá-lo. As Farpas são pois o trait, a pilhéria, a ironia, o epigrama, o ferro em brasa, o chicote – postos ao serviço da revolução.»

Eça de Queirós




ONTEM

Este país está «floribelado».
Reconheço que sou um insatisfeito com a vida, e não me estou a referir às situações em que ela me tem sido madrasta. No entanto, mesmo possuindo um sentir pessimista, considero que não sou um integralista descrente, vivendo em completa bruma tediosa. Por vezes não consigo acompanhar o actual ritmo da vida, mas isso não significa que esteja preso às ideias do meu passado, recorrendo à máxima de que no meu tempo é que era bom, contudo, sou obrigado a reconhecer que dou comigo, frequentemente, a sentir que não me enquadro com a «nova» mentalidade quotidiana, ora de braço e mão esticados, ora de «mãozinha» revirada para cima em gemidos desfalecidos, retorquindo asperamente o desabafo do Júlio Dantas, “isto é só para safados!” e “safadinhos”.
Abordaram-me – simpaticamente diga-se de passagem, apesar do formalismo do agendamento do «encontro» profissional –, para me tirarem algo do meu saber e contando que, em prol de não sei o quê, colaboraria com algo que não concordo. Estão, nestes últimos anos a matar um projecto de trabalho, construído e assente, não na vontade individual, mas sim numa ideia estudada, defendida e aplicada por gerações de profissionais das ciências documentais, há mais de três décadas.
Estas novas gerações de dirigentes, nados e criados nos grupos juvenis dos partidos políticos, que chegaram por estes últimos anos ao poder são, de facto, um produto das circunstâncias. Não possuem cultura geral nem cívica. Julgam que vestir um fato preto com uma gravata cinzenta, do Hugo Boss, ou conduzir um Audi, em segunda mão, lhes dá o estatuto e a experiência.
Muito recentemente um homem – que obviamente não posso identificar –, que apesar de estar na política por ambição pessoal, não esqueceu a educação e os princípios de convivência recebidos dos senhores seus pais, disse-me que havia muita falta de reflexão sobre os comportamentos, que alguns dirigentes se esqueciam da diferença entre o estar e o ser, porque, simplesmente, eram produtos da falta de cultura existente neste pequeno Portugal. E isso acontecia, porque não tinham, ainda, o tempo necessário para obter a sabedoria de vida, ou porque viviam, exclusivamente, do imediatismo encontrado no poder de ser.
A conquista do poder, por parte destas gerações, cultural e humanistamente, híbridas é feita numa base de astúcia e em abandono de qualquer seriedade. Para eles não é preciso ter ideias provenientes do estudo, da análise e da discussão, não sentem, até, a necessidade de conhecer o espaço e o homem que os rodeiam, porque o único objectivo que norteia a sua vida é manter o poder conquistado, seja pela bajulação a quem está acima seja pelo caciquismo opressivo sobre quem está por baixo.
Esta aplicação do medo e da insegurança como método de gestão, embrulhado em traiçoeiros beijos e de falsos cumprimentos, leva-nos a pensar que o mérito de subir mais alto e que a vontade de dar o nosso melhor só conduz ao sermos mais detestados e mais insultados. De um momento para o outro, através de vozes e engraxamentos subservientes, somos passados a bodes expiatórios de mesquinhas ambições e de sobrevivências realizadas a todo o preço, impondo-se o nosso afastamento, não só como potenciais inimigos concorrentes, visto sermos declarados conhecedores das fraquezas, das incongruências e das apropriadas mudanças dos tempos e das vontades.
Segundo o historiador Fernando Rosas, este nosso Portugal dos pequeninos tem uma administração e uma sociedade com uma longuíssima história de delação, correspondendo a um figurino sociopolítico das sociedades subdesenvolvidas, em que a delação é um subproduto da miséria, do atraso e da falta de atitude cívica e solidária. De facto, posso confirmar esta premissa, porque durante os meus recentes estudos, deparei-me com centenas de manuscritos, anonimamente codificados, relatando situações, propósitos, opiniões e acontecimentos, em denúncias nominais, começando, praticamente, todos eles, pela frase «consta que». Há data a que o meu estudo se reporta, estes nomes denunciados – que nada têm de anónimos –, sofreram com a humilhação da prisão, a dor física da tortura, o ostracismo do medo. Hoje, adormecidos pelo sol da democracia, acabamos por nos prendermos na dignidade do silêncio, na procura de vencer na serenidade do estar e na generosidade do esquecimento, para ultrapassar os momentos e as indignações a que somos sujeitos.


HOJE

Dia normal, sem traumas nem tramas.
Continuo magoado e desiludido com o Portugal dos pequeninos. Mais uma vez vieram ter comigo com explicações esfarrapadas e lágrimas de crocodilo. Compreende-se, não vá o diabo tecê-las…
Tenho que procurar não falar demasiado, não porque tenha receio de represálias, mas porque me dói. Sempre disse o que pensava e espero poder continuar a fazer o mesmo.
Aliás, cada vez gosto mais dos meus cães e da sua sinceridade de olhar.