Adormecidos pelo sol, substituímos a crítica pela pilhéria, a dignidade pelo petisco (de mesa, de cama, de compadrio, de negócio), substituíamos, cantando e rindo, a liberdade pela imaginação dela.
Fernando Dacosta
Eu gostaria que aqueles que quisessem fazer-me objecções não se apressem, e que tratem de entender tudo o que escrevi, antes de julgarem por uma só parte, porque tudo se relaciona e o fim serve para provar o começo.
Descartes. Lettre à Meisenne
Sobreviver ao corte do cordão umbilical. E, após o primeiro grito, veio o crescer, o sentir, o conhecer... Depois, vieram os tempos de conquistar o real brincando, em reinos do faz-de-conta. Entretanto, os anos somavam-se nas velas dos bolos de aniversário e, com eles, veio a escola, a puberdade, a descoberta dos sentidos, o beijar em carícias desconhecidas raparigas fugidias, o fumar os primeiros cigarros, o beber em bebedeiras infantis o primeiro vinho... Mais tarde, o tempo da revolta e das vontades de querer ser dono e senhor de um mundo muito seu, revolucionar-se pela justiça de ter e ser ideia... A meio caminho, ultrapassar uma morte que o tempo moldou como sendo, também a sua, no descobrir que, afinal, à chamada da lembrança, responde a dor da saudade. Por esse tempo, foi o descobrir do trabalho em função da necessidade, sentido em romantismo de ideologia de vida no ser e querer ser operário e estudante; E, ainda, no assinar em papel solene um sim vestido de ilusão eterna, terminar os estudos em corridas leituras nocturnas, iludir o tédio e a monotonia de uma relação sem conquista, tentar saber ser pai sendo órfão em vida, analisar os sentimentos, gritar em revolta as desilusões do amor; Agora, depois de amargas decisões, em outro tempo, tentar encontrar a identidade com algo perdido, procurar saber a razão de sobreviver sem ter que estar, constantemente, a pensar no passado, procurando aquela condição necessária que tudo condiciona sem ter que estar, permanentemente, a procurar qual a razão de um homem ter de ficar, no eterno, condenado a sofrer por não ter sabido vencer.
Todavia, havia outra coisa que não pertencia somente ao sentimento. Era algo que não sei definir, mas que estava perceptível. Era qualquer coisa que, apenas, reconheço como comum às personagens, aos lugares, as datas, aos acontecimentos, às sensações; ou melhor, era qualquer coisa que não tem definição própria, mas que pertence – porque transparece – ao mundo das palavras escritas nos textos, apesar de existir no campo do abstracto e não do concreto.
Esta "coisa qualquer" está ligada à nossa atitude perante o que estamos a viver. Neste caso, não seria correcto que a minha apreciação incidisse somente sobre um Eu – que obviamente existe – limitando a imagem do autor dos escritos. Por isso, parti de um princípio de que todos nós, que, em dada altura, também estamos do outro lado, não nos custa aceitar a hipótese de assumir uma ideia proposta. Então, porque não participármos todos na ilusão de que poderá ser o nosso Eu o interlocutor preferencial de tudo aquilo que se pode escrever?
Acho que é um desafio possível de se fazer, sabendo, no entanto, qual poderá ser a nossa resposta. Vamos sempre dizer que, para o nosso caso, se algo aqui dito tem semelhança com a nossa realidade, é pura coincidência.
Que seja.
Talvez, assim, se compreenda que o Eu que se conhece em algumas histórias dispersas é um sobreviver abstracto, resultante da imaginação. E um Eu que brinca com a vida, mas nunca com o outro lado da vida; que não brinca com o que sente para além dele próprio.
Tudo pode ser ilusão. Tudo pode ser realidade. A observação apenas depende de se aceitar ou não o caminho proposto.
Como possuidor de um Eu, escolhi um caminho. Aceitei-o quando conheci um velho ditado polaco, que diz: «jamais persigas o vento na planície, pois é inútil tentar encontrar o que desapareceu».
Todos os homens, todas as mulheres procuram o mesmo caminho. Procuram o que está na origem e que constitui o alimento de toda a actividade, seja física, seja intelectual: o conhecimento.
Só que, por vezes, o que encontram está acompanhado de um não. Eu tenho encontrado, demasiadas vezes, o meu não, por isso, algumas vezes, deixei o meu lugar vazio.
domingo, 30 de maio de 2010
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