sexta-feira, 27 de maio de 2011
25 de Abril, agora, trinta e sete anos depois…
Reconheço-me como um espectador fascinado pelo 25 de Abril.
Por isso, quando a Escola Secundária de Mem Martins me convidou a participar numa conferência comemorativa da data, resolvi traçar a minha intervenção, não como uma análise, descrição e interpretação de factos, mas sim, como uma recordação de sentimentos sobre um acontecimento que, para mim, como investigador, foi (e é), sem margem para dúvidas, um dos mais marcantes da História Contemporânea de Portugal e, simultaneamente, como “ser” e “cidadão”, aquele que se inscreve, na sua representação e na sua substância, como sinónimo de excelência de Liberdade.
Pois, aqui ficam as fichas que utilizei para orientar a minha intervenção de lembranças:
PRIMEIRO MOMENTO
Para perceberem os sentimentos com que eu (jovem de dezasseis anos), recebi a notícia de que algo estava a acontecer em Lisboa que iria modificar as nossas vidas, tenho que recorrer a uma apropriação de palavras que não são minhas, mas que descrevem, primorosamente, aquele momento. Escreveu-as Sophia de Mello Breyner: «Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo».
IDENTIFICAÇÃO E LIGAÇÃO FAMILIAR
Jovem estudante, filho único, de uma família antropologicamente ligada ao mar e à Ericeira (avô materno, pescador e avô paterno marítimo), mãe doméstica e pai, primeiro mestre de oficinas na escola Fonseca Benevides e, depois, oficial de máquinas da marinha mercante.
POSICIONAMENTO IDEOLÓGICO FAMILIAR
Como consciência de classe, toda aquela que é forjada no “pão que o diabo amassou” e, em ambos os casos, numa militância proporcionada pela paixão dos livros e pelo sentido de justiça, a par da incompreensão dos porquês do medo de ser ouvido a exprimir a discordância, o receio, o desejo ou a esperança.
EDUCAÇÃO E INFÂNCIA
Cresci dentro e fora de casa, brincando com a possibilidade de poder ter alguns brinquedos, trazidos de outras paragens europeias, e não, tão-somente, aqueles que em esforço tentava tocar, enquanto esborrachava o meu nariz na montra da loja de brinquedos “Kermesse de Paris”, junto à estação do Rossio; Cresci com os sabores trazidos de outras paragens africanas, mas sabendo que aquelas bananas, aquele açúcar, aquela castanha de caju, aquelas lagostas, aquele chocolate em pó eram um privilégio; Cresci no conforto do agasalho comprado na “Rosicler”, na Rua Augusta, em Lisboa; Cresci, recebendo como herança a possibilidade de aprender mais do que saber ler, escrever ou contar, em escolas e colégios particulares.
PRINCIPIOS E POSTURAS
De meu pai recebi a responsabilidade de ter que cumprir com o aproveitamento do que me estava a ser oferecido. A exigência ficava-se, porém, por um desejo de pai de ultrapassar o que lhe tinha, a ele, sido proporcionado.
No ser jovem, foi-me proporcionado o direito de deixar de os acompanhar, de também ter a minha própria vida, fora do seio familiar. Todavia, isso era feito numa base de confiança de responsabilidade. Recordo-me, quando eles iam passar o fim-de-semana à Ericeira e eu ficava em Caneças, meu pai, antes de sair de casa, chamava-me e fazia-me percorrer, com ele, todas as assoalhadas. No fim, perguntava-me: «viste como a tua mãe tem a casa?»; E à minha interjeição de concordância, dizia-me: «óptimo, pois é assim que eu quero encontrá-la quando chegar».
O MUNDO QUE MEU PAI MEU DEU
Sobre o mundo que ele conhecia e sobre o Portugal em que ele vivia, encheu-me as estantes com romances, alguns deles clandestinos, comprados por debaixo do balcão da livraria “barata” ou em Luanda, antes das apreensões e do “fogo purificador” dos censores. Recordo-me, ainda, das idas nocturnas à Feira do Livro de Lisboa, percorrendo os pavilhões, numa procura dos títulos possíveis e desejados. Foi dessa forma que recebi o seu contributo e fiz, de minha, a sua consciência.
O MEDO
A par do incentivo dado e da liberdade de os ler, aqueles livros tinham que obedecer a uma regra de ouro, não podiam sair para a rua nem serem emprestados.
Aliás, tudo o que era fala familiar, independentemente, de ser sobre algo que se presenciou, que se soube ou que se ouviu, fosse na paragem do autocarro, no talho, na leitura de um jornal ou nas entrelinhas das entrevistas do Fialho Gouveia ao Raul Solnado, nas noites televisivas do ZIP-ZIP, tudo estava restrito à surdina do falatório de casa, regendo-se, sempre para o exterior, pelo silêncio de quem não sabe, não ouviu ou não viu.
Lembro-me de quatro episódios em que esta «lei familiar» foi realizada, a primeira sobre o acidente do Cunene, durante a viagem para São Tomé (1972) – o navio transportava fogo-de-artifício, destinado a uma próxima visita presidencial à ilha. e material e munições de guerra para Angola. Toda a tripulação foi interrogada pela PIDE e obrigada a manter sigilo sobre os acontecimentos (este mesmo navio tinha sido alvo de sabotagem revolucionária, efectuada pela A.R.A., em finais de Outubro de 1970); O segundo, também ele relacionado com questões marítimas, tinha a haver com o «caso Angoche» (Abril de 1971) ; O terceiro, quando fui numa viagem a África, na qual fui avisado que não deveria ter qualquer tipo de conversas com um determinado individuo que, também, viajava no navio (individuo esse que era agente da PIDE); O quarto, vivido por nós três, quando, uns anos antes, fomos “expulsos” do recinto da santuário de Fátima, porque a minha mãe se esqueceu que a sua devoção à “Virgem Maria” não lhe permitia apresentar-se num vestido de “manga à cava”, saia pelo joelho e de cabeça descoberta; O meu pai poderia ficar desde que desarregaçasse as mangas da camisa e eu, manter os meus calções vestidos porque, apenas, tinha dez anos. Mesmo, nessa altura não era conveniente comentar os despropósitos destes fundamentalismos.
O SER FILHO HOMEM E A GUERRA NO ULTRAMAR
Como filho varão, destinado a ser mais um guerreiro, dentro de poucos anos, recebia por parte de meus pais os sinais da revolta e da angústia de me vir a transformar carne para canhão, em terras distantes e por razões não aceites.
Meu pai aceitou a minha escolha curricular, quando lhe disse que ia para Letras, e compreendeu a minha decisão de passar a «História» para segunda alternativa e a «Administração Naval» para primeira opção. Ele não queria isso, pois essa escolha representava a uma vida de afastamento e ausência, de Natais e aniversários festejados por carta e telegrama. Mas, ele, também, sabia que os oito anos de serviço obrigatório na marinha mercante, seriam diferentes da fuga para o exílio, da vergonha social apontada pela deserção ou, infindavelmente melhor, que a morte ou o estropiamento como hipótese de regresso da guerra.
O seu sim foi feito de silêncios e de uma condição: estava fora de questão a ida para a pesca do bacalhau ou para a cabotagem em costas africanas.
Paralelamente, a senhora minha mãe, ouvindo o que os homens da casa tinham decidido entre si, terá, decerto, chorado num justificado picado de cebola, a amargura de ter a certeza que a sua solidão, que era até agora de mulher, passaria a ser, também, de mãe. Mas, também ela quis que eu percebesse que a minha razão era aceite, tanto mais, sabendo que me tinha incutindo na minha formação de homem, os mandamentos da sua crença num Deus que dizia “não matarás” o teu semelhante. E porque não precisava de justificações ideológicas ou políticas para contestar aquela guerra, porque lhe chegava a sua razão, um dia, de manhã, bem cedo, chamou-me, passou-me para a mão um saco de pano cheio de fruta, maços de tabaco, que reconheci serem do meu pai e as minhas revistas do “Mundo de Aventuras” e, perante a minha interrogação, disse-me que íamos a Lisboa ofertar, tudo aquilo, a quem precisava. Sem saber para onde ia, segui contrariado e distraído um caminho que ficaria, para sempre, como a minha saída da adolescência e a entrada no mundo dos adultos.
Chegados à porta principal do Hospital Militar da Estrela e, perante a interpelação do militar presente na portaria, ao que vínhamos, minha mãe respondeu de forma directa e de “olhos nos olhos”: quero, com o meu filho, visitar militares que estejam hospitalizados e que não tenham família que os venham ver. Não sou “madrinha de guerra” nem pertenço a nenhum movimento.
Ainda hoje, estou para saber se a continência que aquele militar fez à minha mãe, foi em resposta ao tom seco e, de certa forma, autoritário que ela deu ao seu propósito, se foi um sinal de respeito e reconhecimento. Uma coisa é certa, ao perfilado, “com certeza, minha senhora”, seguiu-se a ordem a uma ordenança para nos acompanhar até à enfermaria “x”, do piso “y”. Não me lembro das designações, lembro-me, isso sim, que foi no inferno que entrei. Vi a guerra escrita em corpos retorcidos de dor, pela falta da pele, da carne e dos ossos; vi espaços vazios de pernas e de braços cobertos por lençóis brancos; ouvi lágrimas escorrendo, tanto das faces agonizantes, como das palavras grunhidas sem boca; vi mãos tacteando as ofertas, procurando reconhecer que fruta era aquela.
Não foram os “nãos”, nem os “deixe-me em paz” ou os “desapareça!”, às perguntas de, “posso deixar-lhe uma peça de fruta?”, ou “fuma?”, ou, ainda, “quer uma revista para se distrair?” que me impressionaram. Até, porque não foram muitos e, os “sim” superaram esse número. O que, verdadeiramente, me incomodou, foi os silêncios daqueles que não responderam, pois senti-lhes a morte a levá-los, num abraço consentido.
No Natal desse ano, desliguei a televisão quando começaram as mensagens de “Boas Festas e Feliz Ano Novo”. Fiquei com receio de, caso a minha mãe quisesse ir ao Hospital Militar da Estrela, pedir misericórdia a Deus, eu encontrasse um daqueles rostos.
MILITÂNCIA SOCIAL
Socialmente, reconheço que não tive qualquer militância partidariamente política (nem sequer pertenci à mocidade portuguesa); Todavia, tive uma ligação associativa, na Sociedade Musical e Desportiva de Caneças que me proporcionou, entre 1972 e 24 de Abril de 1974, uma experiência de vida que me ajudou a compreender a realidade que me rodeava e, consequentemente, a construir a minha decisão de não querer ser figurante daquela situação. Entre muitas acções associativas, registo, duas como determinantes. A primeira, através do grupo de teatro amador, quando levámos à cena o «Auto da Compadecida», transformando aquele auto de literatura de cordel, de três actos, de 1955, escrito por Ariano Suassuna, numa subtil comédia de crítica ao regime – naturalmente, que a nossa “adaptação” só foi representada depois de a censura nos ter visado o espectáculo.
A segunda experiência, marcada por uma interrupção de «explicações» que estava a dar a três adultos, que preparavam o seu exame de 4ª Classe, agressivamente feita pela GNR, de espingardas em riste. A justificação daquela presença policial era de que tinham sido avisados que estavam a assaltar as instalações da sociedade. A verdadeira razão, viemo-la a conhecer após o 25 de Abril, quando nos foi confirmado que havia ordem da PIDE para a GNR de Loures executar uma rusga preventiva e selectiva dos elementos do grupo de teatro e de alfabetização da sociedade; Mas como encontraram, apenas, três «gatos-pingados», que, por mera coincidência, tinham ficado até mais tarde, e não estavam nomeados como potenciais e declarados oposicionistas, lá nos deixaram ir para casa.
REPRESSÃO
Numa estive preso nem fui interveniente directo numa acção em que tivesse havido repressão policial justificada pela proibição do acto, era demasiado jovem para me envolver conscientemente numa acção subversiva.
No entanto, estive envolvido em duas situações repressivas, por um lado por estar «no local errado, na hora errada», e por outro, porque a repressão era cega, desmesurável e, acima de tudo, demonstrativa da agonia em que o regime vivia para controlar os justos protestos da população. O primeiro caso, passou-se dentro do Liceu D. Pedro V, em Sete Rios, durante os exames orais nacionais do 5ºano, em 1973, quando fomos obrigados (alunos, familiares e professores), a sair do bar da escola, à bastonada; devendo-se esta carga policial ao simples facto de ter havido alguma exaltação e protesto, por parte de quem estava, esperando há várias horas para fazer as matrículas e viu, de repente e sem explicação, o encerramento da secretaria. A polícia foi chamada – provavelmente, pelo «gorila» da escola – e, sem olhar a quem, entrou nas instalações liceais agindo prepotente e violentamente.
A segunda vez em que vi esta brutalidade e ouvi a dor do seu resultado, foi já muito perto do 25 de Abril, na Rua do Malpique, quando a poucos metros do portão do colégio Moderno, para onde me dirigia, me vi obrigado a refugiar-me na livraria “Bertrand”, para não ser apanhado pela carga da polícia de choque que perseguia os estudantes universitários.
RESUMIDAMENTE, é fácil perceber porque o 25 de Abril representa «a madrugada que todos nós esperávamos». Era para nós, jovens e menos jovens, homens e mulheres, o fim de um regime de censura, de obscurantismo e de repressão. Era, para nós, a possibilidade de alterar toda uma situação de ausência de liberdade, de atraso estrutural, de imobilismo do desenvolvimento, de desequilíbrio social gritante e, acima de tudo, a possibilidade de por fim a treze anos de guerra que consumiam todos os recursos do país, empenhavam o seu futuro e destruíam toda uma juventude promissora.
O 25 de ABRIL de 1974, é o resultado directo de um processo de progressiva consciencialização dos militares acerca dos fundamentos que o regime político vigente impunha para justificar a continuação da guerra no ultramar.
Acrescido a este processo, temos uma situação militar que se degradava e exigindo, cada vez mais, recursos humanos e materiais. O progressivo desequilíbrio militar, na Guiné, a favor do PAIGC vai despoletar a compreensão de toda a estrutura militar, naquele território colonial, de que a guerra não poderia ser ganha pela força das armas,
Paralelamente – e isto é vulgarmente considerado como detonador do movimento dos capitães –, são publicados dois decretos-lei reguladores do acesso de oficiais milicianos ao quadro permanente, provocando estas medidas governamentais uma reacção de contestação no seio das forças armadas.
É deste movimento de contestação, algo cooperativo, que começam a efectuar-se reuniões clandestinas por parte dos capitães (a de Bissau e a de Évora são exemplos disso), primeiro numa tentativa de resolução do problema criado, para, num segundo momento, perante as inadequadas respostas governativas, transformar-se o movimento dos capitães num processo conspirativo de fundamentos políticos.
O percurso e a edificação deste movimento até à concretização do golpe militar, na madrugada de 25 de Abril de 1974, é complexo e representa uma crescente consciencialização de grupos, de posições políticas e, consequentemente, de definições de propósitos e de objectivos a atingir.
Operacionalmente, todos os dados ficam lançados às 14 horas do dia 24.
Segundo Aniceto Afonso, «Nas unidades, discretamente, apronta-se a acção. (…) Quando Otelo e o seu estado-maior se concentraram no Regimento de Engenharia 1, na Pontinha, unidade escolhida e preparada para funcional como posto de comando, o Movimento das Forças Armadas estava prestes a espalhar em todo o Portugal uma onda de esperança, de alegria e de entusiasmo. Era a libertação a despontar.»
Pelas 22.55 horas, o locutor João Paulo Dinis, de serviço nos Emissores Associados de Lisboa anuncia: - FALTAM CINCO MINUTOS PARA AS ONZE HORAS. PAULO DE CARVALHO CANTA, «E depois do adeus».
Está desencadeado o golpe militar.
Às 00.20 horas, o locutor Leite de Vasconcelos, no programa Limite da Rádio Renascença, lê a primeira estrofe da canção «Grândola Vila Morena», de Zeca Afonso
«Grândola vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti ò cidade»
É a entrada em acção da certeza da utopia de se saber que «Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo», para DEMOCRATIZAR o ser, DESCOLONIZAR o ter e DESENVOLVER o estar.
Enfim, foi extraordinariamente bonito e gratificante e, mesmo que venha a sentir algum desalento, trinta e sete anos depois, pelo menos, só o facto de ter vivido aquele momento, sinto-o como um previlégio de vida.
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