Num Diário de Notícias, lido de uma forma exaustiva, própria de disponibilidade de fim-de-semana, tomei conhecimento de uma exposição de fotografia, da fotógrafa americana Nina Berman, na Jen Bekman Gallery, de Nova Iorque, denominada Purple Hearts e que retrata pessoas reais que participaram na guerra do Iraque e que regressaram com as marcas dessa cruel, desnecessária e inconsequente guerra. Entretanto, viajando na internet, vi algumas fotos desse «manifesto antiguerra» de Nina Berman Photography.
Essas imagens trouxeram-me à memória outras guerras e outros tempos.
…
Tive a sorte de ter sido poupado à demanda da ida para África, em força, pelo que não senti as balas e os medos, nem vivi as incertezas do regresso. No entanto, foi-me dado a ver os horrores dos sobreviventes desfeitos e solitários. A senhora minha mãe, numa profilaxia de saber de mulher deu-me a consciência política, da mesma forma que me tinha dado a vida, e mostrou-me o sentido da solidariedade, levando-me ao Hospital Militar de Lisboa, a visitar restos de soldados, e no meio do desespero daquelas lágrimas e dos gemidos doridos, deixámos laranjas, cigarros e o conforto do silêncio.
Anos mais tarde, bebendo o Pessoano Menino de Sua Mãe, escrevi, «Gira Espingarda de Menino».
Da guerra, três meses tinham passado.
Desmobilizado ficou, como também quase inteiro, o corpo chegado.
Parabéns recebeu na vila, em festa acolhido.
Foram foguetes, beijos, febras, sorrisos e vinho,
dançados com música de disco gravado.
Mas ninguém sabia...
Nem noiva, de espera incerta.
Nem mãe, de angústia desperta.
Nem pai, de choro escondido.
Que, de homem inteiro ele já estava perdido.
Nem mesmo o Pedrito,
neto da velha criada,
que em brincadeiras perseguia - de punho com gira espingarda -,
e imaginários inimigos matava
com o Tac, Tac, Tac, que fazia.
Ninguém viu...
Que o regressado querido,
o mesmo não estava,
como em passado havia seguido.
Antes:
com cruz ao peito de fala de salvação e, em mão levando,
espingarda de feito por troca de criação.
Agora:
de corpo desfeito,
em combate e destruição,
lembra-se entre choro gritante,
por criança ou ser,
que de diferente apenas tinha
- em declaração de homem crente -
branca é que não !
e que preta por ser,
a morte merecia, quando estendia a mão por pão.
Mas quando
(sem marcas deixar)
mostrou que restando, do soldado querido,
estar por terra deitado
encolhendo-se de medo tremido
- porque lembrança de outro tempo não descansa -,
ao recordar o som da morte por ele sentido.
Causou o silêncio entre a festança e a dança.
Só porque ninguém sabia...
Mas apenas tinha sido, sonhar de guerra em tempo perdido,
que em cruz de engano a Deus tinham traído,
por divino dever,
com o Tac, Tac, Tac que desfazia inimigo desconhecido,
em brincadeiras que fazia gira espingarda de menino,
em todo o seu ser de soldado há muito deixado de ser querido.
......
«África»
Oh África, no que te transformaram.
Eras terra felina, conto de mistério,
só que ficaste odiosa morada,
passada consequente, em morte e bala tratada.
De um lado, por perto: guerra,
de outro, por longe: apenas uma carta,
no meio: outra terra, outra gente.
Foste pesadelo infindável,
quer fosse noite, quer fosse dia;
em que vida,
resume-se a pensamento que não esquece,
que não é aquele, mas um outro.
o plaino adormecido,
tantas vezes sonhado.
Oh África, se tu adivinhasses
quantas vezes foram ditas,
em sonos fugidos: - Adeus terras secas !
Reconhecias, que por entre lágrimas e sangues,
há sinal que não desaparece:
É recordação no regresso,
é caminho certo no querer voltar.
E, por muito pequena que seja a esperança
- enquanto vivo –
é palavra que não perde,
é qualquer coisa que resta;
por muito grande que seja o desvio,
por muito prolongado o caminho.
Oh África, se tu adivinhasses,
o que representas para teus filhos,
decerto querias ser tudo,
menos terra, menos solidão.
Querias ser Deus, querias ser fogo,
apenas recordação de vida
é que não
quinta-feira, 24 de março de 2011
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