«A
actual classe dominante nunca será capaz de resolver a crise, porque ela é a
crise! E não falo apenas da classe política, mas da educacional, da que
controla os média, da financeira, etc… Não vão resolver a crise porque a sua
mentalidade é extremamente limitada e controlada por uma única coisa: os seus
interesses.»
Rob
Riemen
Sou um leigo ou em forma menos simpática, um analfabeto,
quanto ao empirismo teórico da ciência económica e financeira e os seus ditames
funcionais, pelo que o texto que se segue é, acima de tudo, resultado do
conhecimento adquirido na leitura do superficial e da experiência sentida no
quotidiano, e a sua publicação tem mais a ver com uma intenção de partilha de
questões e emoções profundas do que expressar opinião e determinar conceito sobre
o deve e haver cientifico que, em aplicação concreta, resolva o entulhamento
em que estamos todos metidos.
Esta
manifestação escrita, também, pode ser vista como um exorcismo aos demónios que
me atormentam a alma e que querem apoderar-se do meu tempo, retirando-me a
capacidade e a consciência de ser senhor do dia e da hora presente e, no
usufruto dessa condição, poderem transformar incessantemente os meus desejos e
os meus sonhos em realidades perdidas.
Por
estes dias escrevi que me
sentia realizado e, por isso feliz, mas, ao mesmo tempo, dominava-me um
sentimento de preocupação e tristeza. Como explicação desta aparente
incongruência, acrescentava que os dois primeiros sentimentos deviam-se ao
facto da minha filha Maria, aos vinte anos, ter concluído a licenciatura em
Arte e Multimédia-variante fotografia, pela Faculdade de Belas Artes,
salvaguardando com a conveniente e necessária declaração de que a sua graduação
académica tinha sido obtida com frequência completa e dedicada de 3 anos, sem
equivalências nem reconhecimento de créditos curriculares ‘relvalianos’; E, rematava o meu desabafo, dizendo que os dois
estados de espirito subsequentes explicavam-se porque prevejo a incerteza
pessimista do seu futuro, neste promontório agreste que deixou de ser as “madrugadas que se esperavam",
"inteiras e limpas" para em
"Liberdade habitarmos as substâncias
do tempo" e se transformaram numa nova "noite" e num outro "silêncio",
corrompido no sonho e no desejo de não haver, apenas, como alternativa
consequente, uma diáspora forçada para outros lugares.
É
com este estar de dor permanente e crescente angustia que vivo os momentos do
meu tempo, mesmo aqueles que se identificam com as alegrias da vida.
Entre
o muito que aprendi com os meus mestres da Faculdade de Letras, de Lisboa, foi
de que as experiências passadas e os seus consequentes estudos dizem-nos, por
si, muito do que devemos fazer para resolver os dilemas actuais. Ora, a constatação
que faço sobre a nossa realidade de momento é que, infelizmente, pouco ou nada
serve o conhecimento adquirido e o registo da história, porque as gerações que
hoje detêm o poder – umas, reconhecidamente entrelaçadas numa rede promíscua de
famílias político-financeiras de interesses globalizados, outras, educadas e
estruturadas nas máquinas juvenis dos aparelhos das organizações políticas –,
pouco, ou absolutamente nada, estão interessados em afastar a humanidade dos
ditames do caminho imposto, mesmo que isso represente sofrimento, miséria, medo
ou ódio decorrente. Há 70 anos atrás, o mundo de então, abriu a caixa de
pandora soltando a ferocidade das balas e dos ódios ideológicos, em nome do
espaço vital e de mundos ideológicos antagónicos; Hoje, o domínio do tempo e do
espaço de todos nós não anda de suástica na manga da camisa nem faz desfiles
nocturnos iluminados com archotes e fogueiras de livros excomungados; Hoje, nas
chancelarias do poder político e nos escritórios envidraçados das companhias
transnacionais, lá bem nos cocurutos do céu, o bater de tacões e o levantar dos
braços para a frente recto, com a palma da mão para baixo tem outros sinais e
outros comportamentos, mas a linha de pensamento é a mesma; Hoje, as armas
usadas são as sociedades económicas em que vivemos e as suas justificações nas
dependências dos movimentos dos mercados, enquanto que as munições disparadas
são as intencionadas incapacidades de proporcionar a oportunidade, numa
perspectiva arbitrária e desigual de distribuição da segurança, da riqueza e
dos rendimentos, a par da ideia de que é a escassez de trabalho que determina a
necessidade de impor a resignação servil do antes pouco do que nada.
Nesta
linha de pensamento[i],
sobre o actual momento de crise económica e financeira que assiste o mundo
ocidental, em geral, e o nosso país em particular, perspectivamos o problema da
seguinte forma esquemática: Estamos em guerra! Permanente e vertiginosa, extremada
na essência da Luta de Classes.
Somos todos novos ‘servos da gleba’, vivendo em tempos de
realidades cruéis, em que podemos constatar que o apregoado “Estado de Direito”
encontra-se em tal crise de legitimidade e representatividade que nos leva a
construir a ideia de que a democracia, a liberdade, a igualdade, a justiça e os
direitos humanos são, apenas, fracassos da nossa democracia moderna e que,
afinal, se confundem com um estado totalitário, permanentemente, reaccionário.
Academicamente, aceitamos que o fascismo é uma doutrina
totalitária e que em passado recente se manifestou como corrente prática de uma
política de acção que se opunha, violentamente, a qualquer orientação liberal,
socializante ou democrática. O fascismo de hoje, em ascensão na política
internacional, adoptou-se ao sistema e equilibrou as suas manifestações de
poder, enquadrando as suas posturas de arregimentação ideológica com uma nova
severidade económica, social e cultural, encontrada na abstracção das
realidades e na apatia e na indiferença para com todos aqueles que estão fora
da elite social privilegiada. Hoje a xenofobia fascista não é, apenas, para com
os emigrantes ou estrangeiros, para com os comunistas, negros, judeus ou
homossexuais, hoje os próprios cidadãos, indiscriminados e fora de qualquer
rotulagem sociológica, sofrem as represálias deste neofascismo, disfarçado de
híper liberalismo fundamentalista.
Perante
esta análise e a frieza da realidade que vivemos, neste começo da segunda
década do século XXI, atrevo-me, em consonância com a leitura da concepção de Carl Schmitt, de que o “soberano é aquele que decide sobre a excepção”, a afirmar que os
actuais governantes portugueses estão a implantar, sorrateiramente, um Estado
autoritário, de negação e anulação de direitos, dentro da ordem democrática; E,
como todo e qualquer estado de excepção, via de regra, segundo o filósofo
italiano Giorgio Agamben, tem a possibilidade da norma jurídica aplicada
exceder-se a si mesma, Portugal vive, neste preciso momento, sem chamamento às
teorias da conspiração e num limite da lei constitucional, um estado de
excepção, como forma de regra no paradigma político dos estados contemporâneos.
Com a
supressão de direitos e regalias, adquiridos pelo mundo do trabalho ao longo
das últimas quatro décadas, numa temporalidade a perder de vista (por muito que
aparente ser algo de cariz temporário e restrito a situações limites), o actual
governo pretende transformar a excepção da medida, como justificação da
imperiosa necessidade de corrigir uma situação momentânea de deficit e de cumprimento de compromissos
assumidos, numa eterna e permanente normalidade. Ora, o que a História nos tem
demonstrado é que as pretendidas regras de austeridade se transformam em
pobreza, em exclusão social e em violência; E, seguindo as leituras dos
exemplos dos estados de excepção aplicados em prolongamentos de tempo, torna-se
fácil prever que a actuação governamental culminará não no exercício de uma
política com intuito de restabelecer os parâmetros anteriormente existentes,
mas numa combinação de gestão de austeridade com coerção renovada. Ou seja, o objectivo
do governo é recriar uma figura de
cidadão sem qualquer direito, ou seja, o novo servo da gleba e,
consequentemente, propiciando a instalação de um espaço de poder, de mandos e
desmandos de um novo ‘soberano’: o ‘mercado’.
Podemos
consolidar esta nossa observação relembrando a dualidade existente no Estado de Excepção. A primeira, identificada
como principal característica, através dos processos de criação das condições
para que haja vazios legais, permitindo, dessa forma, obter-se o pretexto para
legitimar as suas decisões, num procedimento de constante ignorância grosseira
da constitucionalidade das acções a aplicar e da incompatibilidade criada com as
leis em vigor: E, em segundo lugar, o seu habitual modo de proceder nubloso e
de aproveitamento das zonas cinzentas que medeiam as normas e a sua violação.
Desta
forma, o Estado de Excepção não precisa ser constitucionalmente decretado, há
uma coexistência com o Estado Democrático de Direito, com certo ar de
normalidade jurídica, mas o que se revela é a absoluta falta de códigos, regras
e leis quando o assunto é o estrangulamento violento, por parte do governo
hiperliberal, da população trabalhadora, em absoluta violação
da vida humana. As precárias condições que a maioria da população portuguesa já
enfrenta (e perspectiva-se que venha a continuar a enfrentar), estão muito
aquém de qualquer direito humano e civilizacional vivido nos países europeus
ricos e germanistas dominantes. A nossa vida está, neste momento, muito mais
próxima da miséria do terceiro-mundismo do que da riqueza ocidental; Este
governo está, de todo, mais interessado em nos transformar em servos da gleba,
construindo um novo modelo de produção ‘neofeudal’, em que no topo da pirâmide
estarão os senhores detentores do poder económico, independentemente de serem
portugueses, alemães, americanos, sauditas ou chineses, no meio, eles próprios,
como bons colaboracionistas, capatazes ou testas-de-ferro, em lugares ministeriais
ou de conselhos de administração e, na base, numa total e completa
subjuntividade, a maioria da população.
Num paralelismo de pensamento com o filósofo italiano Giorgio
Agamben, podemos, também, desmontar o conceito de Estado de Excepção para
definir o regime político português contemporâneo, envolvendo a actual vida
política lusa numa situação de enfeudamento ao neoliberalismo europeu, de
influência germanófila, quanto aos valores e métodos de aplicação dos modelos
económico-financeiros, estabelecendo que a
coexistência entre o Estado democrático de direito e o Estado do direito produz
um espaço político paradoxal de indeterminação, onde funciona a violência e a
arrogância das decisões em detrimento dos direitos e interesses dos comuns cidadãos.
Um
estadista português, desaparecido em Dezembro de 1980, em entrevista ao Jornal
«A Capital», publicada em 21 de
Janeiro de 1975, terá reconhecido que «Quem
tenha o mínimo de conhecimento da história da humanidade ou esteja atento ao
panorama social em que vive, não pode evidentemente ignorar a luta de classes.
É inegável que a divergência de interesses entre os vários grupos sociais tem
conduzido uns à conquista do poder em detrimento de outros, tem conduzido à
existência de exploradores e explorados e à contradição ainda hoje dominante na
nossa sociedade: enquanto alguns portugueses detêm os meios de produção, a
esmagadora maioria não tem, para sobreviver, senão a força do seu trabalho».
No século passado, António Sérgio interrogou-se, sobre as elites
literárias portuguesas, porque é que havia tanta vilania entre os «"intelectuais" desta terra, e
tanto escarninho odiador de toda reverberação do espírito». Fê-lo, apenas,
sobre este mundo intelectual porque não chegou a conhecer o Portugal do século
XXI. Porque se assim fosse, decerto, que me autorizaria citá-lo, abrindo o seu
dizer, a todos os interlocutores da contemporaneidade política nacional,
questionando-os porque é que o seu povo sofre o desprezo e o abandono, enquanto
a ‘sarça da retórica’, o faz perder, definhar ou morrer no que ele
tinha de bom, de probo, de saudável, de inteligente e de nobre.
Independentemente do tempo e do propósito, contínua pertinente,
legítima e actual a interrogação sergiana,
porque as fatalidades e as
apatias, as angústias e as dúvidas encontradas no presente são as mesmas que os
nossos pais e os nossos avós conheceram no passado salazarento. Hoje,
perseguem-nos no tempo, as gladiaturas das incertezas do futuro, manifestadas
em modelos cegos e totalitários que, na substituição de princípios e de noções de
equidade social e de respeito pela vida e pela civilidade, impõem medidas de
querer.
Enfim! As realidades do
nosso “fado” em nada mudaram, apenas as formas de se manifestarem e os seus intervenientes,
porque, de facto, continuam a ser tempos de dança política sem rosto ou,
simplesmente, das ditaduras subtis pela existência da falta de alternativas.
Continuamos a viver no descrédito total do papel da função e do desempenhar
político, sustentado pelos continuados desgovernos e corrupções dos aparelhos
governativos e pelas viciadas e vendidas promessas sobre a “terra prometida”,
gritadas tantas vezes nas bancadas da Assembleia da República, agora, decretada
vazia do seu conteúdo republicano, enquanto esquecida na comemoração do seu dia
e invertidamente hasteada na oficialidade dos mastros públicos.
Portugal,
vive há quarenta anos num incumprimento de alteração das suas profundas
desigualdades. Os projectos de transformação da Sociedade, defendidos pelas
vozes dos políticos e partidarizadas nos programas eleitorais, assentam,
sucessivamente, na necessidade em reformas e nos seus propósitos de alterar
profunda e irreversivelmente as estruturas políticas, económicas, sociais e
culturais do País. Todos estes intervenientes ajeitam a sua sapiência partindo
da análise da realidade portuguesa e dos paralelismos internacionais,
enaltecendo as grandiosidades estrangeiras mas registando a pretensão de não
copiar modelos. Todos estes intervenientes têm como meta a conquista da
igualdade e a eliminação progressiva das contradições e desigualdades
económicas, sociais e culturais. Todos eles pugnam pela liberdade e reconhecem
as incongruências responsáveis pela luta de classes.
Mas,
todos eles, continuam a contribuir com os seus desmandos para que haja cortes de
estradas e capas de jornais. Resumidamente, como escrevi há dez anos atrás, «São os desencantos pelo reconhecimento de
que o único desenvolvimento declarado é o do obscurantismo, da ignorância e da
ausência de soluções que, apenas, alteram os dados de podermos ser mais que os
outros, porque se de seis estádios apenas se precisava, fizemos dez no culto do
princípio da vaidade e da fachada. Em suma, são os tempos em que também se vive
na renúncia, com a indiferença, o cansaço e o pessimismo demolidor de quem sabe
que para haver a diferença desejada, vamos ter de entrar numa outra lista de
espera até “sentirmos o desejo de ser civilizados e, não apenas,
contentarmo-nos só em parecê-lo”.
***
A propósito, esqueci-me de observar que o estadista português
desaparecido em Dezembro de 1980, mais precisamente no dia 4, se chama Sá
Carneiro. Estou, hoje, com a sensação que, lá para os lados da rua São Caetano,
à Lapa, a fotografia deste político deve estar arraiada da parede, porque o seu
pensamento, de certeza absoluta, já não faz parte daqueles que se intitulam
seus herdeiros.
[1]
Aliás, é nesta linha de pensamento que o
economista norte-americano Paul Robin Krugman, prémio Nobel da
Economia em 2008 e actual professor na Universidade de Princeton, nos apresenta
a sua tese sobre o actual momento de crise económica e financeira que assiste o
mundo ocidental (“Acabem com esta crise.
Já!”, Lisboa, Presença, 2012). Paul
Krugman é um crítico dos movimentos teóricos da “Nova Economia”, resultantes do
progresso tecnológico e da globalização económica, do final da década de 1990. Krugman é, habitualmente,
considerado um seguidor da escola keynesiana, foi um acérrimo crítico da administração Bush e da sua
política interna e externa - críticas apresentadas na sua coluna do The New
York Times –, tendo escrito mais de duas centenas de artigos e vinte livros
sobre economia e finanças. A 27 de Fevereiro de 2012 recebeu o grau de Doutor Honoris
Causa da Universidade de
Lisboa, Universidade
Técnica de Lisboa e da Universidade Nova
de Lisboa.