domingo, 30 de maio de 2010
Textos antigos, mas pensamentos actuais.
Sintra, a mui prezada...
[Crisfal, século XVI]
Da recolha de textos dispersos vou experimentar uma forma «bloguiana», juntando registos passados, com data ou sem data, e momentos presentes.
Vamos a ver até onde vai a conflituosidade que o tempo impõe ao pensamento.
Vasculhando os meus baús da memória, descobri, perdidos por entre as recordações herdadas dos mais velhos e das páginas amarelecidas dos apontamentos, alguns postais ilustrados de uma outra Sintra, hoje, irremediavelmente, desaparecida.
Com estas imagens de um oitocentismo final, em passagem de século, ficamos a conhecer a verdadeira harmonia urbana de um espaço pequeno – que sempre foi e que continuará a ser sempre pequeno –, talhado na encosta da serra, por entre penedos e minúsculas “varandas socalcadas” de casas construídas e reconstruídas ao sabor da vontade e da sensibilidade do homem e da necessidade de repor o conforto e a modernidade de um novo tempo.
Do socalco maior que em passado já esquecido se terá chamado Chão de Oliva, por real e dogmático querer se viu crescendo, pedra a pedra, a marca de cada um dos tempos e de cada um dos saberes presentes, surgindo, enfim, um «(...) maciço e silencioso palácio, sem florões e sem torres, patriarcalmente assentado entre o casario da vila, com as suas belas janelas manuelinas que lhe fazem um nobre semblante real, o vale aos pés, frondoso e fresco, e no alto as duas chaminés colossais, disformes, resumindo tudo, como se essa residência fosse toda ela uma cozinha talhada às proporções de uma gula de rei que cada dia come todo um reino...»(Eça de Queirós. Os Maias).
Reconheço que sinto uma curiosidade enorme em conhecer os relatos, as opiniões, os impropérios e as defesas pessoais e públicas, causadas pela surpresa do ineditismo daquilo que surgia ou desaparecia por entre recantos, becos e ruelas ou, até, praças de nome forçado, onde, apenas, ali, convergiam e se cruzavam as ruas principais deste “mundo lilliputiano”, por onde garotavam queirosianas crianças, enxovalhadas e em farrapos e os cães vadios dormiam ao sol. Como teriam sido as oportunas aclamações de aplauso ou as inconvenientes e incalculadas mazelas verbais de quem não se precaveu de um discurso convincente de tradicionalismo ou, invés de modernismo para admirar e defender tão maravilhoso espectáculo que se edificava perante os olhares do quotidiano?
Sintra, a mui prezada, cândida de pintores e poetas, também, tem sido, ao longo dos tempos, objecto de desapego gratuito da sua memória histórica e do registo criativo das suas gentes. No passado e no presente a incúria, a ignorância, a insensibilidade estética e a irracionalidade das ortodoxias fundamentalistas – quais pragas que o saber e a inteligência humana não conseguiram apagar do comportamento dos homens –, continuam a prevalecer e a deixar a sua marca cicatrizante de uma falta genética de Cultura, Compreensão, Comunicação e Civismo.
Num artigo muito recente, Guilherme d’ Oliveira Martins, escrevia que, ao mesmo tempo que «devemos garantir e assegurar que os monumentos, os lugares, os bens patrimoniais, os vestígios humanos» e, até, as próprias pessoas, as suas comunidades e os seus espaços, sejam, todos eles, «elementos activos de conhecimento mútuo e de compreensão», temos de «recusar as identidades fechadas» que negam a abertura e a disponibilidade que asseguram «um permanente diálogo entre a tradição e a modernidade».
Sintra a mui prezada, encastrada entre os penedos da serra e o planalto natural do chão de oliva, tem sofrido, no correr dos tempos, alterações mais ou menos significativas, umas em resultado da vontade natura, outras em consequência da permanência do homem e da sua onírica ocupação territorial. Em tempos longínquos, de lugar sagrado e enigmático de criação e pertença divina transformou-se em propriedade humana chancelada em direitos e posses de régios e senhoriais poderes; Em passados centenários, de espaço de quintas e terras de caça e cultivo consolidou-se em lugarejo provinciano; Em contemporaneidades mais recentes, de vila áulica e de pequena urbanidade converteu-se em “Vila Velha” turística e desertificada de calores e vidas humanas.
Três tempos e três passados que são exemplos do confronto entre a dádiva da última tradição e da última «herança recebida» e a “emancipação” da vontade opinativa, imposta como linha de força determinante do pensamento ocasional do “tempo” e do sentimento da “modernidade” presente. Sintra, de Eden poetizado tem sido na nossa contemporaneidade ostracizada na sua salvaguarda de “tradição” em prole de tomadas inconsequentes e desvirtuantes nas decisões de alterar a memória patrimonial existente.
Veja-se o exemplo de mudanças radicais e abrutas resultantes das “intervenções” de 1911 sobre o Palácio Nacional da Vila. As imagens, anteriores a essa data, mostram-nos um Palácio rodeado por um casario que, sem lhe tirar a majestosidade do seu complexo edificante, lhe davam uma intransponência misteriosa e resguardada. A Porta de Armas, ladeada de guaritas, de plátanos e palmeiras anilhadas com bancos de alvenaria e azulejo, em companhia do esguicho manuelino, transformavam, de facto, a confluência de três ruas em praça, dando-lhe uma verdadeira e proporcionada escala. Hoje, tudo isso se perdeu e ficou, apenas, um “falso adro”, sem graça, descontextualizado em relação ao resto do edifício, com um único fim, encher; Primeiro, de autocarros que traziam as pessoas, agora, de pessoas, mas sem autocarros. Ao olharmos para aquele espaço perdido, despido e adulterado, parece que estamos perante um largo fronteiro de um santuário, feito propositadamente para receber comerciais peregrinações incalculáveis. E, ali ao lado, vemos e questionamos, mais em jeito de incompreensão do que de saudade, onde está o queirosiano “Nunes”, a uns passos adiante, a “Alpendrada do Mercado”, para o outro lado, a Igreja da Misericórdia, a Albegoaria, o original Palácio Valenças, a “Volta do Duche”, mais além, a capela de São Sebastião ou a “Cabeça do Lagarto”, à saída do Cemitério de São Marçal, junto à estrada que vai para o Lourel. Enfim, onde estão todos essas memórias e essas identidades de um outro tempo que transformaram este “espaço” privilegiado da cultura Romântica oitocentista? Que compreensão podemos nós tentar fazer dessa Sintra lugareja que a Modernidade desenvolveu em redor de duas bases edificantes, o Palácio Real e a Estação do Caminho-de-Ferro, De facto não podemos negar, aceitar ou, até, justificar o que desapareceu à luz do nosso actual pensamento, no entanto, se queremos sentar na barra do tribunal da história e ser juizes, então só podemos procurar a sensatez e a sabedoria de reconhecer (e citando de novo Guilherme d’ Oliveira Martins), que «o pluralismo, a liberdade, a abertura, a compreensão do outro e do diferente são peças fundamentais numa “sociedade de cultura”».
Por tudo isto e porque considerarmos que qualquer criação humana pode ser reconhecida como referência histórica e cultural, já que constitui o resultado do momento e da memória, ou seja, representa o elemento essencial para ser referência humana, somos de aceitar que a presente intenção de “reconstruir” o “edifício das padarias” e a “Pensão Bristol” são, em si, os elementos necessários e imprescindíveis para, em nome do «respeito e da preservação do espírito dos lugares» procurar uma cultura de paz, aberta e cosmopolita».
Ora, aparentemente, pelo que tenho lido, falado e acompanhado só me resta chegar a uma conclusão, não houve profilaxia, ensinamento nem segura tomada de consciência dos intervenientes do processo. Os cidadãos detentores da propriedade defenderam a sua ideia numa base única de realização, as organizações de salvaguarda responderam com o propósito da sociedade e com o reconhecimento do valor universal da defesa do Património Cultural; As instituições de decisão impuseram a sua definição sem a clarividência e a sensatez de dizer “não” acompanhado de “solução”. Enfim, mais uma vez, funcionou a falta de coesão cultural, a Compreensão, a Comunicação e o Civismo exigível ao reconhecimento das acções de salvaguarda do património cultural como «um valor e um recurso ao serviço de um desenvolvimento humano sustentável, gerador de direitos e deveres».
Por considerarmos que o património cultural materializa e solidifica os laços que unem histórica e geograficamente um povo, torna-se clarividente que o papel a desempenhar, por este mesmo Património Cultural, consubstancia-se como senso comum em instrumento de cidadania e inclusão social, com rebatimentos óbvios de auto-estima comunitária, gerando sentimentos nobres de solidariedade, compromisso e sentido pessoal de "pertença" sob o seu espaço, o seu tempo e as suas dádivas culturais.
Para Frederico Mayor Saragoza (Director Geral da UNESCO), o Património poderá ser uma forma, um meio de caminhar para a paz entre os homens deste mundo. Quanto a nós, e a ideia aplica-se necessariamente a este canto à beira mar plantado, a salvaguarda do Património e da Cultura depende, exclusivamente, da nossa vontade, do nosso saber e do nosso desejo de perpetuar a memória e, consequentemente, promover, o espirito de solidariedade, a compreensão mútua e o respeito mais profundo pela consciência colectiva e individual existente perante as tradições, os costumes, os conhecimentos, as atitudes, as ideias e os sentimentos que foram sendo construídos ao longo do tempo passado e do tempo presente.
Em modo de apresentação
Adormecidos pelo sol, substituímos a crítica pela pilhéria, a dignidade pelo petisco (de mesa, de cama, de compadrio, de negócio), substituíamos, cantando e rindo, a liberdade pela imaginação dela.
Fernando Dacosta
Eu gostaria que aqueles que quisessem fazer-me objecções não se apressem, e que tratem de entender tudo o que escrevi, antes de julgarem por uma só parte, porque tudo se relaciona e o fim serve para provar o começo.
Descartes. Lettre à Meisenne
Sobreviver ao corte do cordão umbilical. E, após o primeiro grito, veio o crescer, o sentir, o conhecer... Depois, vieram os tempos de conquistar o real brincando, em reinos do faz-de-conta. Entretanto, os anos somavam-se nas velas dos bolos de aniversário e, com eles, veio a escola, a puberdade, a descoberta dos sentidos, o beijar em carícias desconhecidas raparigas fugidias, o fumar os primeiros cigarros, o beber em bebedeiras infantis o primeiro vinho... Mais tarde, o tempo da revolta e das vontades de querer ser dono e senhor de um mundo muito seu, revolucionar-se pela justiça de ter e ser ideia... A meio caminho, ultrapassar uma morte que o tempo moldou como sendo, também a sua, no descobrir que, afinal, à chamada da lembrança, responde a dor da saudade. Por esse tempo, foi o descobrir do trabalho em função da necessidade, sentido em romantismo de ideologia de vida no ser e querer ser operário e estudante; E, ainda, no assinar em papel solene um sim vestido de ilusão eterna, terminar os estudos em corridas leituras nocturnas, iludir o tédio e a monotonia de uma relação sem conquista, tentar saber ser pai sendo órfão em vida, analisar os sentimentos, gritar em revolta as desilusões do amor; Agora, depois de amargas decisões, em outro tempo, tentar encontrar a identidade com algo perdido, procurar saber a razão de sobreviver sem ter que estar, constantemente, a pensar no passado, procurando aquela condição necessária que tudo condiciona sem ter que estar, permanentemente, a procurar qual a razão de um homem ter de ficar, no eterno, condenado a sofrer por não ter sabido vencer.
Todavia, havia outra coisa que não pertencia somente ao sentimento. Era algo que não sei definir, mas que estava perceptível. Era qualquer coisa que, apenas, reconheço como comum às personagens, aos lugares, as datas, aos acontecimentos, às sensações; ou melhor, era qualquer coisa que não tem definição própria, mas que pertence – porque transparece – ao mundo das palavras escritas nos textos, apesar de existir no campo do abstracto e não do concreto.
Esta "coisa qualquer" está ligada à nossa atitude perante o que estamos a viver. Neste caso, não seria correcto que a minha apreciação incidisse somente sobre um Eu – que obviamente existe – limitando a imagem do autor dos escritos. Por isso, parti de um princípio de que todos nós, que, em dada altura, também estamos do outro lado, não nos custa aceitar a hipótese de assumir uma ideia proposta. Então, porque não participármos todos na ilusão de que poderá ser o nosso Eu o interlocutor preferencial de tudo aquilo que se pode escrever?
Acho que é um desafio possível de se fazer, sabendo, no entanto, qual poderá ser a nossa resposta. Vamos sempre dizer que, para o nosso caso, se algo aqui dito tem semelhança com a nossa realidade, é pura coincidência.
Que seja.
Talvez, assim, se compreenda que o Eu que se conhece em algumas histórias dispersas é um sobreviver abstracto, resultante da imaginação. E um Eu que brinca com a vida, mas nunca com o outro lado da vida; que não brinca com o que sente para além dele próprio.
Tudo pode ser ilusão. Tudo pode ser realidade. A observação apenas depende de se aceitar ou não o caminho proposto.
Como possuidor de um Eu, escolhi um caminho. Aceitei-o quando conheci um velho ditado polaco, que diz: «jamais persigas o vento na planície, pois é inútil tentar encontrar o que desapareceu».
Todos os homens, todas as mulheres procuram o mesmo caminho. Procuram o que está na origem e que constitui o alimento de toda a actividade, seja física, seja intelectual: o conhecimento.
Só que, por vezes, o que encontram está acompanhado de um não. Eu tenho encontrado, demasiadas vezes, o meu não, por isso, algumas vezes, deixei o meu lugar vazio.
Fernando Dacosta
Eu gostaria que aqueles que quisessem fazer-me objecções não se apressem, e que tratem de entender tudo o que escrevi, antes de julgarem por uma só parte, porque tudo se relaciona e o fim serve para provar o começo.
Descartes. Lettre à Meisenne
Sobreviver ao corte do cordão umbilical. E, após o primeiro grito, veio o crescer, o sentir, o conhecer... Depois, vieram os tempos de conquistar o real brincando, em reinos do faz-de-conta. Entretanto, os anos somavam-se nas velas dos bolos de aniversário e, com eles, veio a escola, a puberdade, a descoberta dos sentidos, o beijar em carícias desconhecidas raparigas fugidias, o fumar os primeiros cigarros, o beber em bebedeiras infantis o primeiro vinho... Mais tarde, o tempo da revolta e das vontades de querer ser dono e senhor de um mundo muito seu, revolucionar-se pela justiça de ter e ser ideia... A meio caminho, ultrapassar uma morte que o tempo moldou como sendo, também a sua, no descobrir que, afinal, à chamada da lembrança, responde a dor da saudade. Por esse tempo, foi o descobrir do trabalho em função da necessidade, sentido em romantismo de ideologia de vida no ser e querer ser operário e estudante; E, ainda, no assinar em papel solene um sim vestido de ilusão eterna, terminar os estudos em corridas leituras nocturnas, iludir o tédio e a monotonia de uma relação sem conquista, tentar saber ser pai sendo órfão em vida, analisar os sentimentos, gritar em revolta as desilusões do amor; Agora, depois de amargas decisões, em outro tempo, tentar encontrar a identidade com algo perdido, procurar saber a razão de sobreviver sem ter que estar, constantemente, a pensar no passado, procurando aquela condição necessária que tudo condiciona sem ter que estar, permanentemente, a procurar qual a razão de um homem ter de ficar, no eterno, condenado a sofrer por não ter sabido vencer.
Todavia, havia outra coisa que não pertencia somente ao sentimento. Era algo que não sei definir, mas que estava perceptível. Era qualquer coisa que, apenas, reconheço como comum às personagens, aos lugares, as datas, aos acontecimentos, às sensações; ou melhor, era qualquer coisa que não tem definição própria, mas que pertence – porque transparece – ao mundo das palavras escritas nos textos, apesar de existir no campo do abstracto e não do concreto.
Esta "coisa qualquer" está ligada à nossa atitude perante o que estamos a viver. Neste caso, não seria correcto que a minha apreciação incidisse somente sobre um Eu – que obviamente existe – limitando a imagem do autor dos escritos. Por isso, parti de um princípio de que todos nós, que, em dada altura, também estamos do outro lado, não nos custa aceitar a hipótese de assumir uma ideia proposta. Então, porque não participármos todos na ilusão de que poderá ser o nosso Eu o interlocutor preferencial de tudo aquilo que se pode escrever?
Acho que é um desafio possível de se fazer, sabendo, no entanto, qual poderá ser a nossa resposta. Vamos sempre dizer que, para o nosso caso, se algo aqui dito tem semelhança com a nossa realidade, é pura coincidência.
Que seja.
Talvez, assim, se compreenda que o Eu que se conhece em algumas histórias dispersas é um sobreviver abstracto, resultante da imaginação. E um Eu que brinca com a vida, mas nunca com o outro lado da vida; que não brinca com o que sente para além dele próprio.
Tudo pode ser ilusão. Tudo pode ser realidade. A observação apenas depende de se aceitar ou não o caminho proposto.
Como possuidor de um Eu, escolhi um caminho. Aceitei-o quando conheci um velho ditado polaco, que diz: «jamais persigas o vento na planície, pois é inútil tentar encontrar o que desapareceu».
Todos os homens, todas as mulheres procuram o mesmo caminho. Procuram o que está na origem e que constitui o alimento de toda a actividade, seja física, seja intelectual: o conhecimento.
Só que, por vezes, o que encontram está acompanhado de um não. Eu tenho encontrado, demasiadas vezes, o meu não, por isso, algumas vezes, deixei o meu lugar vazio.
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