A intenção de relembrar estas palavras, sem as descontextualizar, prende-se com o arrepio que a oportunidade e a actualidade do seu conteúdo nos causam. Assustam-me os tempos presentes nos propósitos anunciados e nas intenções escondidas, porque estamos, obviamente, em tempos temerosos e de recurso ao medo.
«Na luta que actualmente se trava em Portugal entre duas formas de pensar e sentir, de governar e de ser — um poderoso elemento há com que jogam os nossos antagonistas: o medo. «O medo é que guarda a vinha», diz-se. Em grande parte, tem sido o medo que tem guardado a actual Situação. Pode, ainda, ser o medo quem melhor a defenda. Não só em Portugal como em quaisquer países onde um regime conquistou o poder pela força, e pela força impera, esse poderoso inimigo da alma se agigantou a ponto de tapar o horizonte.
Inimigo da alma, digo: porque é o medo que tolhe até os impulsos mais generosos, faz desistir até das aspirações mais justas, afoga até o grito mais espontâneo, e, em suma, corrompe e assombra até a mais clara visão da vida. Pelo medo tica a alma pequenina, embaraçada, inerme, torpe. Encolheu-se – dizemos nós de quem teve medo de agir. E não há imagem mais justa. Não admira que cultivem o medo (pois até inconscientemente o cultivariam!) todos os regimes autoritários todos os governos dum partido exclusivo.
Pelo medo das represálias que a imaginação inquieta lhes sugere, se agarram sempre mais todos os governantes tirânicos a um poder que a violência conquistou, e a violência mantém. Assim como pelo medo das sevícias que sobre eles poderão exercer os governantes poderosos, os vão sofrendo e se vão calando os governados infelizes. Quem melhor sustenta a injustiça social – é, muitas vezes, o medo mútuo.
Não quero falar em represálias, não quero falar em sevicias, não quero falar em tiranias, a propósito do regime que há duas boas dezenas de anos se nos impôs. Não quero... porque não quero. Mas há uns bons anos que grande parte do povo português – deste povo que somos nós todos, e não só quem os governantes decretam – vive sob o entorpecedor império do medo. Também aqui pretendo não exagerar, e antes ser comedido. Nada é preciso exagerar, para se provar não poder eternizar-se a estranha situação em que temos vivido. Sim, admito não se tratar entre nos do medo de terríveis torturas, vinganças e repressões. Não é, propriamente, pavor, o medo que nos tem vindo tolhendo. Mas é o medo indeciso, flutuante, hesitante, vago, mole, continuo... O medo supremamente desmoralizador.
Por exemplo um jornalista está escrevendo calorosamente um artigo. Súbito, hesita; detém-se, arrefece: teve medo! Saíram-lhe umas frases sinceras que a Censura vai cortar; todo o seu artigo ficara truncado, em não sendo suprimido, por causa dessas frases sinceras; o director do seu jornal vai ficar aborrecido com ele por tais complicações…
- Tudo isto é o diabo! E o pobre jornalista encolhe-se, desiste da sua sinceridade. Um professor está estudando o programa que lhe deram a cumprir; um artista está compondo uma sua obra; um simples ciclatão está conversando no café com um amigo; um sociólogo ou um filantropo estão encarando certos aspectos da vida social; um trabalhador ou um proprietário rural estão reflectindo (cada um como pode) nos pequenos ou grandes problemas que lhes interessam – e sobre o seu ombro há qualquer mão que mal pesa mas o não larga, mas importuna e repugna, mas desviriliza. É o tal medo mole e continuo. O professor receia nunca poder servir-se da sua experiência para, de qualquer modo, colaborar, desde já ou mais tarde, na organização dos programas que há-de cumprir. Estudar e criticar o programa que lhe deram – pode parecer uma indisciplina perante os seus superiores (Entre parênteses: havia, em Portugal, uma revista de professores do Liceu, que era modesta mas livre, Criou-se, depois, uma revista oficial dos mesmos professores... e acabaram ambas: a primeira porque era livre, a segunda porque o não era. Feche-se o parênteses). Igual receio oprime todos os meus outros tipos de exemplo: O artista receia que a sua obra seja impedida de circular, porque certas suas páginas podem ser tidas por alusivas ou arrojadas. O simples cidadão baixa a voz ao falar com o amigo, porque há na mesa ao lado uma cara desconhecida; e ele receia que seja a dum polícia de informação. O sociólogo, o filantropo, o trabalhador, o proprietário rural, chegaram, talvez, a certas conclusões que gostariam de tornar públicas e ver discutidas. Mas antecipadamente desanimam... e só encoIhem: poderiam ter de ir longe de mais para justificarem as suas conclusões!
Assim por diante. Neste pais cujo «peito forte» Camões cantou, vive-se, há uns bons anos, sob a sombra desmoralizadora do medo. Dir-me-ão que tais receios são infundados? Admitamos que o sejam algumas vezes. Sabe toda a gente que o não são muitas outras! O fenómeno patente é que muita gente, hoje, não rende nada, por medo; obedece, por medo; se filia em certas associações, por medo; vai a missa e faz sinais da cruz, por medo; apoia a actual Situação, por medo. Do ponto de vista do psicólogo e do moralista (pois destes pontos de vista tenho vindo falando), pergunto: Será o medo elemento com que deva jogar uma doutrina que só propôs moralizar a nação, restituí-la à sua unidade espiritual, reconquistá-la para a sua grandeza histórica? A disciplina, a prudência, a ordem, o respeito – que evidentemente são virtudes, e de modo nenhum alheias ao ideal democrático – poderão, realmente, ser fins de que o medo seja um meio? Poderá gerar o medo algo que não seja a hipocrisia, a cobardia, a duplicidade, a manha, o comodismo, o latente espírito de revindicta adiada? Infelizmente, só quem não saiba ou não queira ver – deixará de ver como têm progredido entre nós, em certos sectores, características tão alheias àquele «peito forte» que Camões exaltou…
Ora bem: nesta luta que actualmente se vem travando entre os dois candidatos à Presidência da República, é ainda com o medo que esgrimem (não quero dizer todos, direi muitos) muitos partidários do senhor Marechal Carmona. Aos pobres dos portugueses, já sobejamente atemorizados, que apontam eles para os desviar do candidato proposto pela Oposição? A Iiberdad0 desenfreada, a desordem indomável, a espada suspensa do comunismo, o puro retrocesso a uma época da perturbação, a cega destruição de toda a obra ultimamente realizada.
É espantoso, mas exacto: depois duma guerra em que se lutou (pelo menos assim se proclamou, o que já é honrar o ideal democrático) por um mundo mais feliz e mais livre, os defensores do nosso chamado Estado Novo não podem conceber Democracia senão como sinónimo de real anarquia e licenciosidade. Não podem admitir mentores e dirigentes democratas senão como homens impotentes para criar uma ordem. Não podem ver na liberdade de expressão do pensamento, senão uma porta aberta ao abuso. Não podem supor que se mantenham as lib0rdades essenciais, senão por uma sufocante restrição destas mesmas liberdades. Nem podem sequer, crer na obra positiva do Estado Novo – pois não temos de negar o que de positivo possa ter realizado o Estado Novo — senão como coisa tão frágil, tão destrutível, tão efémera, que imediatamente seria aniquilada pelos raivosos adversários triunfantes.
Ao fim e ao cabo, porém, uma dúvida me fica: serão, na verdade, sinceros estes nossos antagonistas? Nada poderão, na verdade, conceber, admitir, ver, supor, crer, senão aquilo que dizem? Ou antes será que se servem do medo – esse medo que torna a alma pequenina, embaraçada, inerme, encolhida – para continuaram manietando um povo que já ousou dizer não aos seus reis, quando lhe parecia que os seus reis exorbitavam'?»
José Régio
[“O Recurso ao Medo", publicado em Depoimento contra Depoimento,
edição dos serviços centrais da candidatura do General Norton de Matos.1949]
edição dos serviços centrais da candidatura do General Norton de Matos.1949]